Isto já foi publicado no blogue falecido, mas como aqui é tudo novo, achei melhor reeditá-lo. Aproveitem para reler a bagaça.
Dos limites ou: A metafísica dos barbeiros
Quando nasce a vaidade humana? Uns dizem que é inata; nascemos com ela e, à medida que dela necessitamos – quando o instinto de preservação da espécie assim o exige – se mostra, bela e resplandecente. Outros afirmam que seu surgimento se dá a partir da consciência da sexualidade, daí as crianças de hoje serem tão zelosas de sua aparência – as apresentadoras da TV estariam aí para confirmar essa posição teórica. Isso nos leva a concluir que o sexo, para variar, seria a motivação, não só da vaidade, mas de todos os comportamentos animais (humanos incluídos). Essa constatação, conquanto não respondesse com objetividade à minha pergunta, ao menos poderia servir de consolo quando eu, aos doze anos, era obrigado a cortar o cabelo por imposição paterna.
Parafraseando Mário de Andrade, diria que meu pai era um desmancha-prazeres cinzento, ainda que esse matiz não traduzisse o grau repressivo de seu caráter. Tendo passado por todas as fases do desenvolvimento infantil na sua relação com a figura paterna, ou seja, percebendo que a realidade brutal me impusera aquele homem como o grande carma de minha vida, era com inconformismo que me via obrigado a seguir um modelo imposto de corte de cabelo. Ora, estávamos em 1974, víamos os Secos e Molhados, o glitter rock estava no auge, o Led Zeppelin estourava nas paradas, e não era possível que só eu me visse alijado daquela tendência de longos cabelos (já que as idéias, na época, eram bem curtas...).
Além disso, havia as garotas: como impressioná-las sem o aparato (no bom sentido) necessário? Fora se vestir bem, era preciso ter cabelos longos. Como usávamos uniformes na escola, percebe-se que o primeiro item já estava prejudicado, ainda que todos os alunos fizessem uso dos limites permitidos nas medidas das roupas: barra com abertura máxima de 21 centímetros – no caso de calças; e saia até um palmo acima do joelho. Mesmo os cabelos não podiam ser muito compridos e, embora não houvesse regras explícitas, todos supúnhamos um tamanho "x" que se afigurasse como aceitável e pronto. Mas nem isso meu pai me permitia, é claro.
De modo que, uma vez por mês, o sacrifício de cortar minhas madeixas (que nem madeixas eram, mas tudo bem) impunha-se como ordem superior, divina, incontestável. E, contrariando o ditado que diz que as coisas não podem ficar piores, havia um barbeiro perto de casa especialmente escolhido para esse fim macabro. Por sinal, o próprio nome da atividade tinha alguma coisa de sinistro: nunca me esquecera a leitura dos livros de ciência, que davam notícia da existência de um inseto, transmissor da doença de Chagas, que recebia a mesma denominação do profissional citado. Outro dado estarrecedor era a antiga prática do uso de sanguessugas, quando os barbeiros faziam papel de médicos. Alguma coisa me dizia que aquilo ainda era praticado, em nossos tempos, ainda que sob disfarces sutis, sabe-se lá como.
Pois bem: eu já era vaidoso o suficiente para perceber que aquele tipo de imposição teria de acabar, sob pena de nunca sentir o gosto do beijo de uma garota, e o que viesse depois disso. Entrei no pequeno recinto disposto a modificar o jogo a meu favor. Sentei-me, aguardei aquela amarração incômoda de panos e disparei, tentando ser o mais convincente possível:
— Olha, me corta bem pouquinho, tá?
O sujeito parou, fitou-me atentamente e devolveu:
— Como? Fala mais alto, menino!
Duas complicações: não me ouvira e me chamara de "menino". Se havia uma coisa que me punha fora do sério era ser chamado daquela maneira. (Hoje, o mesmo efeito pode ser alcançado por quem me chama de "japonês". Pode parecer lógico, mas nem de longe é verdadeiro – sem contar a carga de preconceito embutida.) Diante daquilo, resolvi ser mais impositivo:
— Se o senhor puder, corta só um dedo, pode ser?
Evidentemente o pedido foi feito no sentido figurado. A reação do homem, entretanto, quase parecia indicar o oposto:
— Ué, então pra que você veio aqui, menino?
Descobri, do modo mais desastroso, que barbeiros são seres extremamente sensíveis no que diz respeito a sua atividade profissional. Ou seja: existe, em todos, uma vontade, uma volúpia, quem sabe uma tara de origem ancestral, que os leva a querer desbastar completamente a cobertura capilar do freguês, o que é – no mínimo – um contra-senso, pensando bem. Se você pede "dois dedos", cortam três; se deseja só "um acerto de corte", são capazes de ter chiliques. Não me intimidei, contudo. Naquele momento que me pareceu decisivo, encarei-o firmemente, dizendo:
— Vim cortar o cabelo, ora essa! – E, antes que ele movimentasse a tesoura: mas do meu jeito, pode ser?
E foi assim, orientando aquele homem sem imaginação, que eu cometi a primeira das minhas grandes desobediências, a primeira de muitas de um trajeto longuíssimo que não sei se terminará tão cedo. É certo, também, que os cabelos mais longos não me trouxeram nada daquilo que eu esperava. Mas foram uma conquista. Pequena, efêmera, fútil, mas uma conquista. Outras vieram, assim como derrotas desanimadoras, e não sei se o saldo é ou não favorável a mim, atualmente. A batalha dos cabelos, estopim de todas as outras, no entanto, eu só perderia para o tempo, pai de todos os deuses. Mas desse, infelizmente, eu não poderia me livrar.
Um comentário:
Oie, tudo bem?
Queria conversar com voce por email, pode ser?
beijos
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