"Preconceitos"
Por longos anos de minha vida, fui levado a crer em alguns mitos que assombraram (e ainda assombram) os descendentes nipônicos nas terras tupiniquins. O primeiro deles, como não poderia deixar de ser, é a questão do tamanho do membro. Ele mesmo, o Bráulio, o Bernardo, o Asdrúbal, todos esses sinônimos que a Sociolingüística já estudou, no que diz respeito aos termos considerados obscenos. Os sexólogos, porém, encarregaram-se de colocar abaixo esse preconceito, para a sorte e felicidade de nós, tristes representantes da comunidade nipo-brasileira.
Outro grande mito é o da inteligência. "Garanta sua vaga no vestibular: mate um japonês", lembram-se disso? Quando não havia muitos chineses e coreanos por aqui, esse era o grande lema entre os vestibulandos. Só Deus e eu sabemos o quanto e como sofri por conta desse problema. Meu pai me obrigava a ser o primeiro da classe, senão... E tome ameaças e, desculpem se caio no lugar-comum, mas acho que grande parte de meus traumas vem desse tempo de estudos forçados. Enfim, a gradativa integração da comunidade aos costumes brasileiros e vice-versa, mais a já aludida invasão dos chineses e coreanos derrubaram esse 2º mito e liberaram o meio de campo para os artistas plásticos, videomakers, cineastas, músicos etc. de origem nipônica, sem que precisássemos nos esconder dos parentes e conhecidos.
Agora, o 3º mito, e assunto principal desta crônica, é o seguinte: os chamados relacionamentos inter-raciais. Nunca ouvi de meus pais uma proibição taxativa (embora tenha amigos e amigas que já passaram por essa experiência), mas imagino qual seria a reação deles se eu começasse a sair com uma não-japonesa de qualquer espécie. E aí está o curioso: todos os meus objetos (no bom sentido, por favor) de desejo pertenciam, ou à comunidade alemã, ou à italiana. É de se conjecturar, inclusive, se não foi esse o motivo pelo qual Japão, Alemanha e Itália se juntaram para formar o Eixo, na Segunda Guerra Mundial. Penso que não, mas como explicar a atração, ou melhor, a compulsão que eu sentia pelas garotas do ginásio, colégio e da faculdade que tivessem as referidas ascendências? Creio que foi esse o motivo de minha atração por Márcia, Ângela, Sandra e Mônica, só para ficar nos exemplos mais imediatos. Mas a mais duradoura de todas e, acredito, a de maior peso em minha vida, foi Bettina.
Antes que alguém se lembre de alguma antiga novela da TV, é necessário esclarecer que Bettina foi (ou melhor, é) das poucas boas lembranças que tenho de minha passagem pelo Rio Grande do Sul. Eu a conheci como freqüentadora de um curso que ministrei por lá e, depois, continuamos a nos encontrar nos corredores da Casa de Cultura Mário Quintana e nos bares de Porto Alegre. De acordo com ela, a intelectualidade (entenda-se "artistas") de lá sempre aparecia nos mesmos lugares, daí o encontro inevitável. Nessas ocasiões, trocávamos figurinhas, por assim dizer, exercitando todas as funções de linguagem. Entre as reiterações fáticas e as persuasões conativas (traduzindo: entre os "sabe?" e as cantadas veladas), tínhamos tempo para conversas poéticas. Bettina era uma escritora razoável - ainda que ela própria se achasse ruim - e uma publicitária instigante, embora eu suspeitasse que seu verdadeiro talento estivesse nas ditas artes visuais (sem qualquer malícia). Nós nos encantávamos com nossos próprios umbigos, mas tínhamos consciência dessa egomania dupla. Eu a sentia crescer dentro de mim, sua figura alegre e melancólica, a contradição barroca num perfil árcade, idealizada por um poeta romântico (no caso, eu). E assim nos víamos, ela me apresentava alguns amigos e amigas, mas eu só reconhecia seus cabelos longos e loiros, seus olhos de um verde sem adjetivos e suas pernas quase sempre à mostra, por conta do calor da capital gaúcha. Eu estava me sentindo envolvido por ela, ou por mim, sabe-se lá. Bettina era tudo o que eu desejava, mas a verdade é que não sabia se estava ansiando por uma imagem ou por uma pessoa, ou - o mais certo - eu até soubesse sim, a Bettina de pele clara e lábios finos, de uma delicadeza tão pouco teutônica, talvez minha "Fräulein" (Mário, me perdoe!). Mas o que eu queria era a amante? A mãe? A cúmplice? O que eu esperava de Bettina senão o beijo, o sexo, os cabelos me entrando nos olhos e na boca; o calor e o frio porto-alegrenses, eu só queria a felicidade concretizada e sabia, bem dentro de mim, o quanto isso era ilusório, desejo mesmo, na acepção original da palavra.
Mas foi numa noite, a última (para variar) na cidade que, entre um martíni e outro, Bettina e eu trocamos um beijo, um beijo de literatura, também quente e frio, o aroma do álcool misturado às salivas, poemas trocados em guardanapos. Foi só um beijo, mas longo e sem explicação como são os melhores, uma troca, a compreensão de nossas igualdades e diferenças, de nossa humanidade tão pequena. Em volta, pessoas nos olhavam, espantadas. Dependendo do lugar, japoneses e alemãs ainda não se juntam com tanta freqüência.
Blogue de um pretenso poeta, intelectual de cafeteria, reclamão de todas as horas e professor de Literatura por profissão (e, dizem, talento). Poemas e exercícios narrativos, crítica de cultura e maledicências ligeiras em tom farsesco. Tudo aqui é mentira.
26 de junho de 2006
22 de junho de 2006
Historinha para passar na "Sessão da Tarde"
“O primeiro beijo ou: A garota mais vagal da cidade”
Andréia foi uma das alunas que tive quando dei aulas num colégio técnico em São Paulo. No começo, como em todos os anos, minha atenção restringiu-se ao comum: mais uma garota em meio a tantas outras que, estudando Processamento de Dados, não se conformava em ter Língua Portuguesa no currículo. Depois, passei a me sentir estreitamente ligado a ela. Não sei, uns cabelos negros e finos, e olhos dourados, e um corpo que sabia ser adolescente, deixando quase de o ser. Mas os lábios... os lábios grossos, quase pedindo, articulando palavras naquele tom fino e seguro e frágil, parecia sedução e eu me sentia tocado pelo contato tépido de sua língua e o ouro de suas íris irradiando luzes fixas sobre mim. Mas era minha aluna, uma garota ainda; como superar as culpas que eu sentia?
Soube, depois, que ela costumava, vez por outra, tomar o mesmo ônibus que eu, ao voltar para casa. Nessas ocasiões, ensaiávamos conversas tímidas de ambos os lados, eu sentia um desejo crescendo nela, ela em mim, só que não ousávamos ultrapassar o limite traçado, sei que havia o medo da rejeição, da palavra dura como um veredicto, do que seria uma mentira, mas o que fazer com as contradições humanas? Percebia, percebíamos nossas hesitações, mas nada se efetivava, e assim fomos até setembro.
Nessa época, eu iria me mudar de São Paulo, pedira demissão do emprego, era um dos meus últimos dias de aula. Andréia e eu saímos juntos, como nos acostumáramos a fazer. É engraçado pensar que, mesmo entre os seus e os meus colegas, não havia insinuações maldosas ou maliciosas, como se o que existisse entre nós fosse tão hipotético que sequer mereceria atenção. Chegamos à parada de ônibus, ambos num silêncio cheio de pontas; eu mesmo não entendia o porquê de minha mudança, que eu atribuía a experiências novas (com as conseqüências imagináveis) e, a despeito do que eu sentia por Andréia, ou por conta da incerteza de seus sentimentos, ou pelos dois fatores, o certo é que eu sairia da cidade. Dentro do coletivo, o mesmo mutismo. Nós nos olhávamos furtivamente, um querendo que o outro quebrasse a barreira do vazio que crescia entre mim e ela. Mas talvez fosse a última chance e, então, Andréia sussurrou:
- Vou descer um ponto depois do meu. Você me acompanha?
Sim, eu concordei e, apesar das sombras e da noite e do precário da situação, desci com ela, propus que caminhássemos até sua casa. Ela assentiu. Durante o percurso, paramos, Andréia virou-se de frente para mim, eu respirava com dificuldade, ela se equilibrou na ponta dos pés para me alcançar, passou seus braços em torno do meu pescoço, segurei sua cintura, passei minha língua por seus lábios úmidos, nos beijamos com delicadeza no início, depois com fúria, trocamos líquidos quentes, sim, eu beijei Andréia, um beijo doce de chiclete e desejos, beijei Andréia, rapazes!, e senti o aroma de seus cabelos e a firmeza de seu corpo sem dores, nos beijamos e quase em seguida nos afastamos, talvez uma culpa, não sei bem, sentimos vergonha do que fizéramos, sequer sabíamos por quê, e nos olhamos novamente, e voltamos a nos abraçar num beijo mais longo, sob as luzes artificiais da cidade.
- Minha despedida, disse Andréia, num sorriso de que eu nunca soube precisar o alcance.
Após isso, ficamos sem nos ver mais. Nesse tempo, voltei para São Paulo, readaptei-me à vida agitada daqui, procurei viver. Minha ex-aluna, no entanto, não me saía da memória. Escrevi para ela, telefonei-lhe, mas jamais obtive resposta ou retorno. Todos os dias, passava em frente a sua casa, numa tentativa tola de encontrá-la sem, no entanto, ter coragem de tocar a campainha e perguntar por ela.
Uma noite, pude revê-la. Entrou no ônibus, reconheceu-me, novamente aquele sorriso que tanto me cativara. Era quase a mesma: percebia-se o cabelo mais curto, ligeiramente ruivo, o corpo mais desenvolvido. Crescera: os seios querendo beijar o mundo.
- Oi, Ricardo!, ela me cumprimentou. E, diante do meu olhar interrogativo: Desculpa não ter ligado; você sabe, continuo muito preguiçosa. Fez o comentário e emendou: Conhece o Márcio?, apresentando-me seu namorado.
Beijei-a no rosto, estendi a mão ao rapaz, os dois se afastaram. Virei-me para Denise, uma amiga que me acompanhava, expliquei:
- Uma ex-aluna minha.
Foi o que eu disse. Mas pensei, disfarçando a sensação da perda quase irreparável que, ao menos, ele era bonito, muito mais bonito do que eu.
Andréia foi uma das alunas que tive quando dei aulas num colégio técnico em São Paulo. No começo, como em todos os anos, minha atenção restringiu-se ao comum: mais uma garota em meio a tantas outras que, estudando Processamento de Dados, não se conformava em ter Língua Portuguesa no currículo. Depois, passei a me sentir estreitamente ligado a ela. Não sei, uns cabelos negros e finos, e olhos dourados, e um corpo que sabia ser adolescente, deixando quase de o ser. Mas os lábios... os lábios grossos, quase pedindo, articulando palavras naquele tom fino e seguro e frágil, parecia sedução e eu me sentia tocado pelo contato tépido de sua língua e o ouro de suas íris irradiando luzes fixas sobre mim. Mas era minha aluna, uma garota ainda; como superar as culpas que eu sentia?
Soube, depois, que ela costumava, vez por outra, tomar o mesmo ônibus que eu, ao voltar para casa. Nessas ocasiões, ensaiávamos conversas tímidas de ambos os lados, eu sentia um desejo crescendo nela, ela em mim, só que não ousávamos ultrapassar o limite traçado, sei que havia o medo da rejeição, da palavra dura como um veredicto, do que seria uma mentira, mas o que fazer com as contradições humanas? Percebia, percebíamos nossas hesitações, mas nada se efetivava, e assim fomos até setembro.
Nessa época, eu iria me mudar de São Paulo, pedira demissão do emprego, era um dos meus últimos dias de aula. Andréia e eu saímos juntos, como nos acostumáramos a fazer. É engraçado pensar que, mesmo entre os seus e os meus colegas, não havia insinuações maldosas ou maliciosas, como se o que existisse entre nós fosse tão hipotético que sequer mereceria atenção. Chegamos à parada de ônibus, ambos num silêncio cheio de pontas; eu mesmo não entendia o porquê de minha mudança, que eu atribuía a experiências novas (com as conseqüências imagináveis) e, a despeito do que eu sentia por Andréia, ou por conta da incerteza de seus sentimentos, ou pelos dois fatores, o certo é que eu sairia da cidade. Dentro do coletivo, o mesmo mutismo. Nós nos olhávamos furtivamente, um querendo que o outro quebrasse a barreira do vazio que crescia entre mim e ela. Mas talvez fosse a última chance e, então, Andréia sussurrou:
- Vou descer um ponto depois do meu. Você me acompanha?
Sim, eu concordei e, apesar das sombras e da noite e do precário da situação, desci com ela, propus que caminhássemos até sua casa. Ela assentiu. Durante o percurso, paramos, Andréia virou-se de frente para mim, eu respirava com dificuldade, ela se equilibrou na ponta dos pés para me alcançar, passou seus braços em torno do meu pescoço, segurei sua cintura, passei minha língua por seus lábios úmidos, nos beijamos com delicadeza no início, depois com fúria, trocamos líquidos quentes, sim, eu beijei Andréia, um beijo doce de chiclete e desejos, beijei Andréia, rapazes!, e senti o aroma de seus cabelos e a firmeza de seu corpo sem dores, nos beijamos e quase em seguida nos afastamos, talvez uma culpa, não sei bem, sentimos vergonha do que fizéramos, sequer sabíamos por quê, e nos olhamos novamente, e voltamos a nos abraçar num beijo mais longo, sob as luzes artificiais da cidade.
- Minha despedida, disse Andréia, num sorriso de que eu nunca soube precisar o alcance.
Após isso, ficamos sem nos ver mais. Nesse tempo, voltei para São Paulo, readaptei-me à vida agitada daqui, procurei viver. Minha ex-aluna, no entanto, não me saía da memória. Escrevi para ela, telefonei-lhe, mas jamais obtive resposta ou retorno. Todos os dias, passava em frente a sua casa, numa tentativa tola de encontrá-la sem, no entanto, ter coragem de tocar a campainha e perguntar por ela.
Uma noite, pude revê-la. Entrou no ônibus, reconheceu-me, novamente aquele sorriso que tanto me cativara. Era quase a mesma: percebia-se o cabelo mais curto, ligeiramente ruivo, o corpo mais desenvolvido. Crescera: os seios querendo beijar o mundo.
- Oi, Ricardo!, ela me cumprimentou. E, diante do meu olhar interrogativo: Desculpa não ter ligado; você sabe, continuo muito preguiçosa. Fez o comentário e emendou: Conhece o Márcio?, apresentando-me seu namorado.
Beijei-a no rosto, estendi a mão ao rapaz, os dois se afastaram. Virei-me para Denise, uma amiga que me acompanhava, expliquei:
- Uma ex-aluna minha.
Foi o que eu disse. Mas pensei, disfarçando a sensação da perda quase irreparável que, ao menos, ele era bonito, muito mais bonito do que eu.
19 de junho de 2006
Uma pausa para nossos comerciais!
O assunto da hora parece mesmo ser a Copa do Mundo de Futebol. Do meu ponto de vista bastante míope, digo que tudo isso me aborrece por demais. É a ditadura do pensamento único: não se pode sair para jantar, não dá para assistir a um mísero filme no cinema, não é possível sequer pedir comida pelo telefone. E pobre de você se não tiver TV a cabo: se gosta da coisa, é obrigado a ouvir a voz irritante e os comentários "brilhantes" do locutor da única emissora que transmite os jogos. Se não gosta, o show de horrores de sempre é a opção. Pior: o monopólio faz com que o telespectador seja obrigado (a não que tire o som da TV) a ouvir as ladainhas a respeito do "Fenômeno", jogador "como nunca houve neste país". A mim me irrita essa patriotada de bandeirinhas nos automóveis, de cortinas verde-amarelas, de camisas idem e unhas (!!!!) também. Fora as cornetas no saguão do prédio, a gritaria histérica, o buzinaço depois das vitórias. Darwin estava corretíssimo, convenhamos. |
16 de junho de 2006
Mais provas de um crime antigo: o de escrever narrativas...
“Teoria do medalhão enviesada ou ‘Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve’”
Acho que quase todo mundo já teve, em sua vida escolar, momentos de sucesso, seja intelectual ou esportivo, seguidos das decorrências naturais desses acontecimentos: admiração, inveja e garotas, nem sempre nessa ordem, muito menos simultaneamente. Uns conseguiam mais, outros menos, conforme sua inteligência e aparência, duas qualidades que dificilmente se achavam juntas numa mesma pessoa. Fato curioso, concordo, nem que visto pelo enfoque de vitamina de preconceitos. No reboque disso, as fantasias e os sonhos, que vão perdendo a ingenuidade à medida em que se sai da infância e batemos todos com a cabeça na fase adolescente, que não tem esse nome por acaso. Se é disso que vou falar? Penso que sim, embora não tenha certeza dos rumos desta história, nem se ela valeria alguma coisa hoje. Enfim, são relatos de outros tempos.
Era meu primeiro ano numa escola pública, estadual, e me surpreendia a quantidade e variedade de tipos humanos no pátio, num maremoto de calças de tergal cinza-escuro e camisas quase brancas dos veteranos contrastando com a luminosidade dos recém-chegados. "Vais encontrar o mundo", diria meu pai, se tivesse lido O Ateneu , o que não era o caso. Deixando de ser o único filho em idade escolar, eu perdera o privilégio relativo do ensino particular, à época ainda inferior a algumas escolas do Estado. Meu pai, como bom representante da etnia nipônica, mantinha uma espécie de pacto conosco, ou seja, aquele que nos obrigava a tirar sempre as melhores notas em todas as matérias. Para ser mais exato, sua expectativa era a de que fôssemos os primeiros da classe, da escola, do bairro, da cidade, do país, do planeta e, se não fosse pedir muito, do universo. Para quem conhece o seriado "Jornada das Estrelas", eu deveria ser uma espécie de sr. Spock mirim. Ou, caso prefiram a "Nova Geração", da mesma série, o Tenente Comandante Data, um andróide. Meu irmão, ignoro se por esperteza ou comodismo, nunca foi o aluno que meu pai desejava em suas maquinações. Eu, ao contrário, me revelei um pequeno gênio escolar, com desempenhos notáveis em todas as disciplinas. Não que me agradasse, propriamente, estudar feito um obstinado; mesmo porque, aos oito anos, você não está em condições de usufruir daquelas vantagens advindas com a notoriedade, referidas logo no início desta história. As garotas, especialmente. Digo isto agora, embora me lembre de ter olhos muito especiais para uma loirinha que se sentava duas fileiras a meu lado, mas que minha timidez cuidou de afastar definitivamente de minha vida. Então era isso: eu estudava por temer represálias traumatizantes, de que meu irmão era vítima, obrigado a ler e reler e refazer exercícios matemáticos e científicos em geral, de sentido e objetivos desconhecidos até para mim, com minha longa experiência de três anos de incessante labuta escolar.
Havia, porém, pedras em meu caminho de estudante de sucesso. Duas, especificamente. Dois, para ser mais preciso. O primeiro se chamava Aílton; o segundo, Nehemias. Incomuns até nos nomes, além de excelentes alunos. A rivalidade entre nós, diferente do que possa parecer, se restringia ao desempenho nas provas. Aílton era o mais próximo de mim, inclusive no sentido espacial, pois éramos quase vizinhos. Magro como salário de professor, e até mais, isso lhe valeu, nos anos seguintes, o criativo apelido de "Osso" (por sinal, alcunha do Dr.McCoy, médico da nave estelar Enterprise, chamado de Bones pelo capitão Kirk). Haveria, nessa coincidência, algum vaticínio? O convívio diário mostrou que não, e mesmo no futebol pelejávamos numa harmonia perfeita maior, errando e acertando o mesmo número de lances. Nada que lembrasse os entreveros entre Spock e McCoy, na série de T.V. Ou tudo, dependendo da interpretação que se dê. Já Nehemias mantinha uma certa distância da turma em geral, embora não deixasse de ser simpático conosco em todas as ocasiões. Se fosse buscar semelhanças contemporâneas, Nehemias seria um Michael Jackson desengonçado, característica que se foi acentuando com o passar do tempo, não sei se por outra coincidência ou por um acidente de percurso, como se diz hoje.
Não bastasse, recapitulando, a pressão paterna e da competição pela primazia das notas, havia também um terceiro componente esmagador, e que nos fitava diariamente, afixado no espaço acima do quadro-negro: o retrato do Presidente da República, com seu olhar austero, logo acompanhado pelo do Ministro da Educação, este menos aterrorizante, embora me parecendo tão onipresente quanto o outro. A verdade é que não havia ocasião em que meu olhar não cruzasse com os dos retratos, tornando minha batalha ainda mais extenuante, visto me sentir obrigado a derrotar dois oponentes e a satisfazer, não apenas um pai, mas três, e todos severíssimos, para meu azar e de todos os demais alunos e não-alunos daquela e de outras escolas e lugares.
Enfim , o ano letivo passou com todos os contratempos previstos e, ao seu final, recebemos o boletim com as notas decisivas. Aílton ficara com a média de 98; Nehemias, com 97; e eu, oh glória das glórias, 100. Impossível dizer, hoje, quais foram minhas sensações naquela ocasião, se experimentei alguma daquelas alegrias catatônicas ou – preso ainda a minha ingenuidade dos oito anos – não atinei com a importância daquilo, ao menos no que diz respeito a pais e mestres. Porque era apenas uma medalha o prêmio por meus esforços. Uma pecinha de cobre ou latão contendo uma frase inscrita: "Honra ao Mérito", de significado longínquo e misterioso, quase cercado daquela aura das obras de arte e objetos sagrados. A fitinha verde e amarela que ornava a peça lembrava-me, para piorar, do caráter patriótico daquela – vá lá que seja – honraria, que não teve qualquer efeito prático imediato em minha vida, a não ser o de complicá-la ainda mais, visto as cobranças em relação a meu desempenho escolar aumentarem em tamanho e qualidade nos anos seguintes, sem que eu conseguisse corresponder a essas, digamos, esperanças. Constatava, entre desconsolado e decepcionado, que teria sido melhor se eu recebesse uma insígnia como aquelas que havia nos uniformes da tripulação da Enterprise. Pertencer à Frota Estelar seria, sem dúvida, mais honroso e menos trabalhoso – pensava eu – que manter o posto de melhor aluno da classe, um lugar muito sem graça e de poucas perspectivas aventureiras ou emocionais.
Aílton, com o tempo, confirmou sua habilidade para com a matemática, mas não teve condições de desenvolvê-la até o infinito. Ou teve, sei lá. Uma onda mais forte o levou e só o devolveu dois dias depois, devidamente lacrado num caixão pobre, num dia muito quente, lembro-me bem disso. Nehemias, perto da oitava série, afastou-se de nós, tornando-se companheiro do chamado "pessoal da bagunça" e assumindo um comportamento que eu, na época, achei estranho e mesmo perigoso, e que só depois fui identificar como sendo homossexual. A meu respeito, posso dizer que a medalha, se algum efeito teve, foi o de me tornar um medroso em relação a conquistas, a sucessos ou coisas que tais. É como se eu visse, nessa possibilidade, uma série de situações de tensão que me seriam insuportáveis, caso viesse a enfrentá-las. Psicologia barata, diria minha querida amiga Luciana, do alto de sua formação profissional. De um modo ou de outro, todos os três fracassamos, por vontade própria talvez, por imposição de um Destino sádico, por um motivo diverso qualquer, ignoro exatamente o quê. E só para encerrar: como toda medalha tem dois ou até três lados, é preciso dizer que, no ano de minha efêmera e incômoda glória, o Brasil sagrou-se tri-campeão mundial de futebol e "Jornada nas Estrelas", a série, completava seu primeiro ano de encerramento, para tristeza de todos os que viam e viviam um pouco além daqueles anos medrosos.
Acho que quase todo mundo já teve, em sua vida escolar, momentos de sucesso, seja intelectual ou esportivo, seguidos das decorrências naturais desses acontecimentos: admiração, inveja e garotas, nem sempre nessa ordem, muito menos simultaneamente. Uns conseguiam mais, outros menos, conforme sua inteligência e aparência, duas qualidades que dificilmente se achavam juntas numa mesma pessoa. Fato curioso, concordo, nem que visto pelo enfoque de vitamina de preconceitos. No reboque disso, as fantasias e os sonhos, que vão perdendo a ingenuidade à medida em que se sai da infância e batemos todos com a cabeça na fase adolescente, que não tem esse nome por acaso. Se é disso que vou falar? Penso que sim, embora não tenha certeza dos rumos desta história, nem se ela valeria alguma coisa hoje. Enfim, são relatos de outros tempos.
Era meu primeiro ano numa escola pública, estadual, e me surpreendia a quantidade e variedade de tipos humanos no pátio, num maremoto de calças de tergal cinza-escuro e camisas quase brancas dos veteranos contrastando com a luminosidade dos recém-chegados. "Vais encontrar o mundo", diria meu pai, se tivesse lido O Ateneu , o que não era o caso. Deixando de ser o único filho em idade escolar, eu perdera o privilégio relativo do ensino particular, à época ainda inferior a algumas escolas do Estado. Meu pai, como bom representante da etnia nipônica, mantinha uma espécie de pacto conosco, ou seja, aquele que nos obrigava a tirar sempre as melhores notas em todas as matérias. Para ser mais exato, sua expectativa era a de que fôssemos os primeiros da classe, da escola, do bairro, da cidade, do país, do planeta e, se não fosse pedir muito, do universo. Para quem conhece o seriado "Jornada das Estrelas", eu deveria ser uma espécie de sr. Spock mirim. Ou, caso prefiram a "Nova Geração", da mesma série, o Tenente Comandante Data, um andróide. Meu irmão, ignoro se por esperteza ou comodismo, nunca foi o aluno que meu pai desejava em suas maquinações. Eu, ao contrário, me revelei um pequeno gênio escolar, com desempenhos notáveis em todas as disciplinas. Não que me agradasse, propriamente, estudar feito um obstinado; mesmo porque, aos oito anos, você não está em condições de usufruir daquelas vantagens advindas com a notoriedade, referidas logo no início desta história. As garotas, especialmente. Digo isto agora, embora me lembre de ter olhos muito especiais para uma loirinha que se sentava duas fileiras a meu lado, mas que minha timidez cuidou de afastar definitivamente de minha vida. Então era isso: eu estudava por temer represálias traumatizantes, de que meu irmão era vítima, obrigado a ler e reler e refazer exercícios matemáticos e científicos em geral, de sentido e objetivos desconhecidos até para mim, com minha longa experiência de três anos de incessante labuta escolar.
Havia, porém, pedras em meu caminho de estudante de sucesso. Duas, especificamente. Dois, para ser mais preciso. O primeiro se chamava Aílton; o segundo, Nehemias. Incomuns até nos nomes, além de excelentes alunos. A rivalidade entre nós, diferente do que possa parecer, se restringia ao desempenho nas provas. Aílton era o mais próximo de mim, inclusive no sentido espacial, pois éramos quase vizinhos. Magro como salário de professor, e até mais, isso lhe valeu, nos anos seguintes, o criativo apelido de "Osso" (por sinal, alcunha do Dr.McCoy, médico da nave estelar Enterprise, chamado de Bones pelo capitão Kirk). Haveria, nessa coincidência, algum vaticínio? O convívio diário mostrou que não, e mesmo no futebol pelejávamos numa harmonia perfeita maior, errando e acertando o mesmo número de lances. Nada que lembrasse os entreveros entre Spock e McCoy, na série de T.V. Ou tudo, dependendo da interpretação que se dê. Já Nehemias mantinha uma certa distância da turma em geral, embora não deixasse de ser simpático conosco em todas as ocasiões. Se fosse buscar semelhanças contemporâneas, Nehemias seria um Michael Jackson desengonçado, característica que se foi acentuando com o passar do tempo, não sei se por outra coincidência ou por um acidente de percurso, como se diz hoje.
Não bastasse, recapitulando, a pressão paterna e da competição pela primazia das notas, havia também um terceiro componente esmagador, e que nos fitava diariamente, afixado no espaço acima do quadro-negro: o retrato do Presidente da República, com seu olhar austero, logo acompanhado pelo do Ministro da Educação, este menos aterrorizante, embora me parecendo tão onipresente quanto o outro. A verdade é que não havia ocasião em que meu olhar não cruzasse com os dos retratos, tornando minha batalha ainda mais extenuante, visto me sentir obrigado a derrotar dois oponentes e a satisfazer, não apenas um pai, mas três, e todos severíssimos, para meu azar e de todos os demais alunos e não-alunos daquela e de outras escolas e lugares.
Enfim , o ano letivo passou com todos os contratempos previstos e, ao seu final, recebemos o boletim com as notas decisivas. Aílton ficara com a média de 98; Nehemias, com 97; e eu, oh glória das glórias, 100. Impossível dizer, hoje, quais foram minhas sensações naquela ocasião, se experimentei alguma daquelas alegrias catatônicas ou – preso ainda a minha ingenuidade dos oito anos – não atinei com a importância daquilo, ao menos no que diz respeito a pais e mestres. Porque era apenas uma medalha o prêmio por meus esforços. Uma pecinha de cobre ou latão contendo uma frase inscrita: "Honra ao Mérito", de significado longínquo e misterioso, quase cercado daquela aura das obras de arte e objetos sagrados. A fitinha verde e amarela que ornava a peça lembrava-me, para piorar, do caráter patriótico daquela – vá lá que seja – honraria, que não teve qualquer efeito prático imediato em minha vida, a não ser o de complicá-la ainda mais, visto as cobranças em relação a meu desempenho escolar aumentarem em tamanho e qualidade nos anos seguintes, sem que eu conseguisse corresponder a essas, digamos, esperanças. Constatava, entre desconsolado e decepcionado, que teria sido melhor se eu recebesse uma insígnia como aquelas que havia nos uniformes da tripulação da Enterprise. Pertencer à Frota Estelar seria, sem dúvida, mais honroso e menos trabalhoso – pensava eu – que manter o posto de melhor aluno da classe, um lugar muito sem graça e de poucas perspectivas aventureiras ou emocionais.
Aílton, com o tempo, confirmou sua habilidade para com a matemática, mas não teve condições de desenvolvê-la até o infinito. Ou teve, sei lá. Uma onda mais forte o levou e só o devolveu dois dias depois, devidamente lacrado num caixão pobre, num dia muito quente, lembro-me bem disso. Nehemias, perto da oitava série, afastou-se de nós, tornando-se companheiro do chamado "pessoal da bagunça" e assumindo um comportamento que eu, na época, achei estranho e mesmo perigoso, e que só depois fui identificar como sendo homossexual. A meu respeito, posso dizer que a medalha, se algum efeito teve, foi o de me tornar um medroso em relação a conquistas, a sucessos ou coisas que tais. É como se eu visse, nessa possibilidade, uma série de situações de tensão que me seriam insuportáveis, caso viesse a enfrentá-las. Psicologia barata, diria minha querida amiga Luciana, do alto de sua formação profissional. De um modo ou de outro, todos os três fracassamos, por vontade própria talvez, por imposição de um Destino sádico, por um motivo diverso qualquer, ignoro exatamente o quê. E só para encerrar: como toda medalha tem dois ou até três lados, é preciso dizer que, no ano de minha efêmera e incômoda glória, o Brasil sagrou-se tri-campeão mundial de futebol e "Jornada nas Estrelas", a série, completava seu primeiro ano de encerramento, para tristeza de todos os que viam e viviam um pouco além daqueles anos medrosos.
14 de junho de 2006
Pequena fábula escrita após o jogo do Brasil.
Mr. Malaman resolveu tornar-se publicamente meu amigo. Faz questão de me cumprimentar ao me ver; chama-me pelo nome, bem alto, para que todos vejam como ele sabe ser gentil e como é incapaz de guardar rancores. E, principalmente, para demonstrar que eu é que sou o mau, o perseguidor sem motivo, o invejoso de sua carreira bem sucedida de criador - traduzido e lido em mil idiomas. Estranho considerar que se eu, na ótica de Mr. Malaman, sou tão desprezível, o que o leva a querer que eu reconheça sua presença acachapante e sua voz de cano furado? Mr. Malaman, definitivamente, é um sujeito perigoso. Ridículo, mas nem por isso isento de periculosidade.
13 de junho de 2006
Outro texto dos tempos d'antanho...
“Refrigerante”
Festa na escola, vocês já passaram por isso? Não sei se ainda são feitas, tamanha a violência que infesta nossas vidas, mas eram prática comum nas escolas públicas estaduais, sempre às voltas com falta de verbas, motivo pelo qual as associações de pais e mestres (entidades criadas para suprir o que o governo não fazia, ou seja: tudo) organizavam essas atividades caça-níqueis. No começo, eram só as famigeradas e odiosas (para mim) festas juninas. Tinha e tenho trauma dessas coisas. Primeiro que acho ridículo esse negócio de, vivendo em São Paulo, se fantasiar de caipira (com todo o respeito aos que possuem raízes interioranas). Depois, obrigar a criançada a dançar quadrilha que, no meu entender, só vale para assaltos a bancos. Por fim, a extorsão qualificada que era a "cadeia", um lugar para onde levavam qualquer um que tivesse cara de trouxa ou não fosse forte o suficiente para resistir a seus captores. Bom, mas estou me desviando do assunto.
Então, começaram com as tais festas e, após algumas tentativas frustradas com temas infelizes - do salgado, de doces etc. - tiveram (ignoro quem) a idéia de promover uma festa do guaraná. Não, nada de orgias aspergidas com o suposto afrodisíaco. Guaraná, aquele que vem em garrafas, gasoso, doce, e produzido pela mesma companhia que produz a melhor cerveja do país (de acordo com ela própria). Não, não é a Brahma. (Um parênteses: como é duro evitar o merchandising hoje em dia!) Festa do Guaraná, com fornecimento de bebidas pela Antárctica, atual Ambev (pronto, tá feita a propaganda!), salgados e sanduíches pelas mães, e canecas vendidas juntamente com o convite que dava direito à entrada e a todo o guaraná que você conseguisse beber.
Devo confessar que nunca fui fã desse refrigerante. Hoje, talvez pela invasão quase hecatômbica da... da... Coca-Cola (desisto!), me sinto tentado a bebericar o líquido dourado e doce enquanto me enveneno com um Big Mac. Mas, naquela época, já sentia saudades de uma daquelas marcas locais, desaparecidas por conta do poderio econômico dos concorrentes. Havia a Tubaína, que ainda pode ser encontrada em certos bairros, mas que não chega aos pés das que bebi. Melhor que esta, no entanto, era a Cerejinha que, evidentemente, não tinha resquício nem lembrança da fruta que inspirava seu nome, mas era única, um diferencial perante a mesmice de bebidas inócuas (ou quase) de hoje.
Enfim, o guaraná... Imaginem um bando de pré-adolescentes dos anos 70 numa festa em que pode beber o quanto quiser. É lógico que vão inventar alguma idiotice do tipo "vamos ver quem bebe mais?" Venceria quem bebesse o maior número de canecas, metaforicamente falando, é claro. Lembram que, um pouco antes, eu havia dito que guaraná é doce? Pois bem, depois da 20ª dose (uns quatro litros, pelo que posso calcular) não é mais. Além de um aumento considerável da barriga (devido ao gás) e da vontade de urinar (por motivos óbvios), crescia em todos nós - e em mim, com mais certeza - um amargor na boca, que parecia se estender à garganta e ao estômago, e que tirava todo nosso apetite no que diz respeito aos sanduíches que eram vendidos. Hoje, com a sabedoria adquirida com os anos, eu diria tratar-se de uma azia. Na época, era só um treco esquisito, ou seja lá como chamávamos a isso.
Diante do quadro emergencial, dirigimo-nos, um de cada vez (pois, mesmo naqueles tempos, o que iriam pensar de um grupo de rapazes, de pós-infantes, de panacas, enfim, entrando todos num recinto fechado e recluso), dirigimo-nos, repito, ao banheiro. A dúvida que me assaltou, e aos outros, era se aliviávamos a bexiga ou o estômago (este, via garganta). Parecia que todo mundo havia descarregado fora do vaso, tamanha a quantidade de água (água?) no chão. Isso, fora o cheiro dominante, um tanto pesado para quem bebera e comera além da conta. Hamlet, se estivesse em meu lugar, teria reformulado sua famosa dúvida existencial. Para resumir, segurei o quanto pude a respiração e esvaziei minha bexiga, que nunca mais seria a mesma depois daquele dia.
Não só ela, aliás; nossa escola também, já que, devido ao sucesso alcançado, os organizadores resolveram repetir a dose nos anos seguintes, prova incontestável da proliferação geométrica da idiotice, ao menos naquela região. Meus amigos e eu, baseados na lógica de nossa idade, é evidente, está mais que na cara (novamente no sentido figurado, por favor), não havia outro caminho a optar que não fosse comparecer lá todos os anos, cometendo as mesmíssimas besteiras. Não sei porque ninguém teve a idéia de trocar o guaraná pela Grapette, outro refrigerante que marcou minha infância. Mas acho que, se fossem fazer isso, colocariam a Fanta Uva no lugar. E essa, eu detestava.
Nessa altura, eu sei que vão dizer que faltaram sexo, drogas e rock'n roll. Também não houve palavrões, nem sangue, nem morte. E, para falar a verdade, nem história, se formos ser rigorosos. Mas, ora, o que é que vocês queriam de uma geração como a minha, marcada ainda pela repressão educacional nipônica? É verdade que, um tempo depois, muitas dessas coisas, que alguns considerariam hediondas, entraram em minha vida. Quanto a meus amigos, uns fumam; outros bebem; outros praticam as duas atividades; outros, nenhuma delas; e todos engordam e envelhecem. Penso se o mesmo não ocorre comigo, mas creio que não, ao menos no grau deles. Culpa dos refrigerantes? Pode ser, embora eu ache que o problema maior esteja em outras artificialidades do dia-a-dia. Mesmo porque festas como aquelas, nunca mais as tivemos, e acho que esta é a nota melancólica desta - vá lá que seja - história, só para não fugir de meus hábitos. Mas a melancolia, os motivos, ficam pra uma próxima vez.
Festa na escola, vocês já passaram por isso? Não sei se ainda são feitas, tamanha a violência que infesta nossas vidas, mas eram prática comum nas escolas públicas estaduais, sempre às voltas com falta de verbas, motivo pelo qual as associações de pais e mestres (entidades criadas para suprir o que o governo não fazia, ou seja: tudo) organizavam essas atividades caça-níqueis. No começo, eram só as famigeradas e odiosas (para mim) festas juninas. Tinha e tenho trauma dessas coisas. Primeiro que acho ridículo esse negócio de, vivendo em São Paulo, se fantasiar de caipira (com todo o respeito aos que possuem raízes interioranas). Depois, obrigar a criançada a dançar quadrilha que, no meu entender, só vale para assaltos a bancos. Por fim, a extorsão qualificada que era a "cadeia", um lugar para onde levavam qualquer um que tivesse cara de trouxa ou não fosse forte o suficiente para resistir a seus captores. Bom, mas estou me desviando do assunto.
Então, começaram com as tais festas e, após algumas tentativas frustradas com temas infelizes - do salgado, de doces etc. - tiveram (ignoro quem) a idéia de promover uma festa do guaraná. Não, nada de orgias aspergidas com o suposto afrodisíaco. Guaraná, aquele que vem em garrafas, gasoso, doce, e produzido pela mesma companhia que produz a melhor cerveja do país (de acordo com ela própria). Não, não é a Brahma. (Um parênteses: como é duro evitar o merchandising hoje em dia!) Festa do Guaraná, com fornecimento de bebidas pela Antárctica, atual Ambev (pronto, tá feita a propaganda!), salgados e sanduíches pelas mães, e canecas vendidas juntamente com o convite que dava direito à entrada e a todo o guaraná que você conseguisse beber.
Devo confessar que nunca fui fã desse refrigerante. Hoje, talvez pela invasão quase hecatômbica da... da... Coca-Cola (desisto!), me sinto tentado a bebericar o líquido dourado e doce enquanto me enveneno com um Big Mac. Mas, naquela época, já sentia saudades de uma daquelas marcas locais, desaparecidas por conta do poderio econômico dos concorrentes. Havia a Tubaína, que ainda pode ser encontrada em certos bairros, mas que não chega aos pés das que bebi. Melhor que esta, no entanto, era a Cerejinha que, evidentemente, não tinha resquício nem lembrança da fruta que inspirava seu nome, mas era única, um diferencial perante a mesmice de bebidas inócuas (ou quase) de hoje.
Enfim, o guaraná... Imaginem um bando de pré-adolescentes dos anos 70 numa festa em que pode beber o quanto quiser. É lógico que vão inventar alguma idiotice do tipo "vamos ver quem bebe mais?" Venceria quem bebesse o maior número de canecas, metaforicamente falando, é claro. Lembram que, um pouco antes, eu havia dito que guaraná é doce? Pois bem, depois da 20ª dose (uns quatro litros, pelo que posso calcular) não é mais. Além de um aumento considerável da barriga (devido ao gás) e da vontade de urinar (por motivos óbvios), crescia em todos nós - e em mim, com mais certeza - um amargor na boca, que parecia se estender à garganta e ao estômago, e que tirava todo nosso apetite no que diz respeito aos sanduíches que eram vendidos. Hoje, com a sabedoria adquirida com os anos, eu diria tratar-se de uma azia. Na época, era só um treco esquisito, ou seja lá como chamávamos a isso.
Diante do quadro emergencial, dirigimo-nos, um de cada vez (pois, mesmo naqueles tempos, o que iriam pensar de um grupo de rapazes, de pós-infantes, de panacas, enfim, entrando todos num recinto fechado e recluso), dirigimo-nos, repito, ao banheiro. A dúvida que me assaltou, e aos outros, era se aliviávamos a bexiga ou o estômago (este, via garganta). Parecia que todo mundo havia descarregado fora do vaso, tamanha a quantidade de água (água?) no chão. Isso, fora o cheiro dominante, um tanto pesado para quem bebera e comera além da conta. Hamlet, se estivesse em meu lugar, teria reformulado sua famosa dúvida existencial. Para resumir, segurei o quanto pude a respiração e esvaziei minha bexiga, que nunca mais seria a mesma depois daquele dia.
Não só ela, aliás; nossa escola também, já que, devido ao sucesso alcançado, os organizadores resolveram repetir a dose nos anos seguintes, prova incontestável da proliferação geométrica da idiotice, ao menos naquela região. Meus amigos e eu, baseados na lógica de nossa idade, é evidente, está mais que na cara (novamente no sentido figurado, por favor), não havia outro caminho a optar que não fosse comparecer lá todos os anos, cometendo as mesmíssimas besteiras. Não sei porque ninguém teve a idéia de trocar o guaraná pela Grapette, outro refrigerante que marcou minha infância. Mas acho que, se fossem fazer isso, colocariam a Fanta Uva no lugar. E essa, eu detestava.
Nessa altura, eu sei que vão dizer que faltaram sexo, drogas e rock'n roll. Também não houve palavrões, nem sangue, nem morte. E, para falar a verdade, nem história, se formos ser rigorosos. Mas, ora, o que é que vocês queriam de uma geração como a minha, marcada ainda pela repressão educacional nipônica? É verdade que, um tempo depois, muitas dessas coisas, que alguns considerariam hediondas, entraram em minha vida. Quanto a meus amigos, uns fumam; outros bebem; outros praticam as duas atividades; outros, nenhuma delas; e todos engordam e envelhecem. Penso se o mesmo não ocorre comigo, mas creio que não, ao menos no grau deles. Culpa dos refrigerantes? Pode ser, embora eu ache que o problema maior esteja em outras artificialidades do dia-a-dia. Mesmo porque festas como aquelas, nunca mais as tivemos, e acho que esta é a nota melancólica desta - vá lá que seja - história, só para não fugir de meus hábitos. Mas a melancolia, os motivos, ficam pra uma próxima vez.
9 de junho de 2006
Mais um texto longo que ninguém vai ler...
“Os limites”
A amizade é sempre um aprendizado difícil. Enquanto brincamos, não importa se junto a árvores ou num videogame de última geração, estamos constantemente exercitando nossa capacidade de convivência, aceitando ou rejeitando o que o outro nos oferece ou subtrai. Já adultos, saindo em programas comuns ou oferecendo jantares, permanecemos aprendendo a controlar o encontro de egos os mais diversos, sempre temerosos da invasão alheia e da inevitável explosão que resultaria disso. Brigas, ofensas, mágoas, tudo parece um processo em que nós nos obrigamos a tomar atitudes que fundamentarão toda a nossa vida a partir daquele momento, apontando, ou para a felicidade, ou para a desgraça total.
Nunca fui de muitas amizades. Aliás, acho improvável que qualquer ser humano normal tenha, durante a vida, mais do que cinco ou seis amigos, daqueles de verdade. Durante a infância e a adolescência, tive pelo menos dois, em muita coisa opostos, mas que estiveram comigo em quase todos os momentos difíceis, desde a mudança de escola até o primeiro emprego. Sérgio era o mais expansivo; Henrique fazia o gênero ranzinza. Ainda que amigos, poucas vezes tivemos experiências em comum, talvez pela diferença de temperamentos que nos levava a posições, várias vezes, antagônicas. No geral, era eu o mediador, justamente o menos capaz de tomar qualquer tipo de decisão, quanto mais a que fosse correta ou conveniente. Uma vez, no entanto, tivemos de atuar juntos, ou quase.
Foi numa época em que a moda, entre nós, era jogar cartas. Nem importava muito o jogo, até porque não havia interesse monetário; éramos apenas um grupo de adolescentes competindo entre si para ver quem era o mais esperto ou o mais sortudo. Meus pais haviam saído, de modo que a casa era toda nossa. E, dentre as muitas bobagens que jovens são capazes de fazer quando se pilham sozinhos, alguns de nós escolheram a pior: beber. Sérgio estava nesse grupo. No começo, era difícil resistir ao rosto sorridente e redondo de nosso amigo, embalado por alguns goles de um vinho barato que alguém havia trazido. Os amendoins e as batatas fritas, que deveriam durar a tarde toda, estavam sendo devorados com uma velocidade inimaginável pelos que bebiam. Apenas Henrique e eu, sóbrios, acompanhávamos a escalada da euforia; no começo, divertidos; com o tempo, apreensivos. Sérgio parecia estar perdendo o controle, o que foi notado pelos demais: tudo o que fazia era olhar para as cartas que tinha na mão e rir, rir muito. Por melhor que fosse o jogo, não creio que houvesse motivo para tanta alegria, a não ser...
— Um bando de palhaços!, disse Sérgio.
— Como é que é?, perguntamos.
— Palhaços. O valete, a dama, o rei, o coringa... Ôrra, meu, cada figura esquisita!
O que fizemos foi trocar sensações de desamparo; nunca havíamos passado por aquilo. Nossos olhares se voltaram para o Nélson, um dos que trouxera as bebidas, e o mais experiente da turma. Sua tranqüilidade, seu autocontrole, seu senso de responsabilidade, com certeza, nos tirariam daquela situação complicada. Ele, levantando-se rapidamente, fez soar sua decisão:
— Bom, pessoal, hora de se mandar!
Se mandar? Mas que negócio era aquele? Nosso amigo ali, bancando o ridículo, mal podendo ficar sentado, quanto mais de pé, e a solução era ir embora? Além do mais, aquilo estava acontecendo em minha casa, e eu é que teria explicações a dar se o Sérgio, sei lá, desmaiasse, entrasse em coma, morresse. Além disso, onde deixaríamos o cadáver? Pensei no terreno baldio perto dali, mas foi um instante só. Logo voltei à realidade, constatando que, como bons adolescentes, estávamos, literalmente, entrando em pânico. Vozes se alternavam:
— Banho frio. Me disseram que banho frio é bom pra essas coisas.
— É, mas café é melhor pro cara acordar.
— Ele está dormindo?
— Bom, quando a gente deita no chão...
— Onde?!
—Ali, debaixo da mesa.
Com o coração dividido entre a batedeira e a geladeira, ou seja, entre a taquicardia e a síncope, decidimos aplicar todos os truques que conhecíamos para recuperar nosso amigo. Henrique, até então calado, lançou sua nota de sabedoria:
— Eu não falei? Só tinha que dar nisso mesmo! É o que dá não saber respeitar os limites!
— Limites? Que limites?, falei, enquanto tentava fazer com nosso bêbado debutante bebesse um pouco do café que havíamos preparado.
— Os limites, ora!, encerrou Henrique, balançando a cabeça.
Confesso que o mais difícil foi colocar o Sérgio no chuveiro, já que esse negócio de tirar roupa de homem não fazia parte de nosso cotidiano. Enfim, depois de muita luta e recomendações, deixamos o sujeito lá dentro, ainda vestido, rezando para que a água fria não o pusesse em estado de choque. Minutos de ansiedade se passaram até que a porta do banheiro se abriu, mostrando uma figura deplorável, os cabelos e as roupas pingando, e um riso sem graça nos lábios. Ainda trôpego, mas menos bêbado, Sérgio tentava se desculpar:
— Ô, pessoal, mancada, heim?, disse, enquanto se sentava.
O caso é que ele não se sentou. Digo melhor: desabou na cadeira e caiu direto ao chão, adquirindo a densidade do plasma. Não sei por quê, mas me lembrei também das aulas de biologia: nosso amigo era a encarnação da matéria protéica inerte, sem vontade própria. Entre a queda e esse pensamento, a debandada foi quase total: Nélson alegou uma dor de cabeça repentina, Walter tinha a lição de matemática para fazer, o Pedro esquecera a torneira do banheiro aberta. Ficamos somente o Henrique e eu. Além, é óbvio, de nosso incômodo bebum.
— E agora?, perguntei.
— Ele vomitou no banheiro. Bom, pelo menos acertou no vaso
Uma das figuras de linguagem mais recorrente em minhas relações fraternais era, sem dúvida, a ironia. Por outro lado, talvez ele estivesse falando aquilo a sério. Porque uma das coisas que mais me surpreendia no Henrique era sua capacidade quase única de ver a realidade sem qualquer maquiagem, extraindo dos fatos apenas o que eles continham de concreto.
— Vai morrer.
— Tá brincando!
— Você vai morrer se não arrumar essa bagunça. Olha o banheiro! A sala, então... E, balançando a cabeça: é o que dá passar dos limites.
Não agüentei aquele tom de sermão paterno adiantado. Afinal, já que eu tinha de levar a bronca, que ao menos fosse do titular, e não de um regra três qualquer. Com meus brios sacudidos, como diria o cronista, resolvi dar um basta naquela empulhação:
— Escuta, já tô por aqui com esse papo de “limites”, tá legal? Você só fala, fala, fala, mas fazer que é bom, nada! Quer saber? Por que você não foi embora junto com os outros? Pelo menos eu não tinha que ficar te agüentando aqui, me torrando! Sou eu que vou me ferrar, mesmo, não é?
Faltava um golpe final, uma frase arrasadora que colocaria aquele imbecil de uma vez por todas em seu lugar, aniquilando aquela existência miserável, alguma coisa do tipo...
— Pô, Henrique, me ajuda!
Por alguns segundos, os mais longos de minha vida até então, Henrique me olhou seriamente. Contemplou os copos sobre a mesa, as cartas espalhadas, bitucas de cigarros, a massa amorfa que um dia tinha sido nosso amigo, a água que ele trouxera do banheiro. Quando percebi, havia um sorriso em seu rosto, um sorriso meio gozador, meio solidário, não soube dizer exatamente qual seria, em meio a meu desespero.
— Se a gente começar agora acho que dá tempo até seus pais chegarem.
Não acreditei no que ouvi, pelo menos durante o pasmo inicial. Logo em seguida, porém, e mesmo sem compreender direito o que levara Henrique a mudar de humor, limpei, digo, limpamos todos os vestígios de nossa imprudência. Ao fim, restava apenas um, o mais pesado. Este, depois de mil pedidos de desculpas de nossa parte, foi entregue a seu pai, que, avalio, deve ter dado boas risadas com o ocorrido, passada a tempestade do primeiro momento.
Aquele dia, contudo, me marcou pela oportunidade de travar contato com um Henrique até então desconhecido. Ele, que não representava para mim mais que um colega muito mal-humorado, passara a ser uma pessoa com quem se podia contar, para os bons e maus momentos. Henrique me ensinara mais um passo na complicada arte da amizade. Com sua casmurrice, sua sinceridade irritante, mas, sobretudo, com sua tolerância, ele criou o elo que nos manteria unidos nos quase quinze anos seguintes, depois dos quais cada um de nós seguiu o seu caminho, seja lá para onde ele apontasse. Mas após tanto tempo, penso, algo satisfeito, que eu também lhe ensinei alguma coisa. O valor de um bom grito na hora certa, quem sabe? Ou a percepção dos limites da paciência alheia (no caso, a minha). Prefiro ser menos modesto, entretanto; digamos que, comigo, Henrique pôde exercer um pouco sua parte afetiva, escondida atrás da máscara da severidade nipônica tão longamente cultivada. Sem querer, ajudei meu amigo a romper um limite, mesmo que timidamente, e só naquela ocasião.
Nos anos seguintes, ainda aprenderíamos muito um com o outro, enquanto nossos egos cresciam e nossos olhos se voltavam para direções diversas. Jogamos futebol juntos, compartilhamos angústias amorosas, vivenciamos nossas dúvidas existenciais, até um dia em que deixamos de nos ver, de nos falar, de nos preocupar mutuamente com nosso bem-estar. Recentemente, pude vê-lo passando apressado pela rua. Esbocei um chamado, mas ele estava longe, talvez não me tivesse visto, ou preferisse mesmo não me ver. Eu poderia tê-lo alcançado, se quisesse, mas apenas observei-o dobrando a esquina seguinte, sumindo de minha vista. Creio que – é quase certo – talvez tenha sido melhor assim, somente a lembrança da amizade servindo de sustento para nosso afeto, de uma época em que romper limites pedia muito mais que coragem. A verdade é que não resistiríamos a nossos próprios fantasmas, à certeza de que o tempo passou e plantou raízes definitivas em todos nós, transformando-nos em homens vagos e insensíveis. Parece contradição, eu sei; mas quem disse que a vida não tem dessas coisas?
A amizade é sempre um aprendizado difícil. Enquanto brincamos, não importa se junto a árvores ou num videogame de última geração, estamos constantemente exercitando nossa capacidade de convivência, aceitando ou rejeitando o que o outro nos oferece ou subtrai. Já adultos, saindo em programas comuns ou oferecendo jantares, permanecemos aprendendo a controlar o encontro de egos os mais diversos, sempre temerosos da invasão alheia e da inevitável explosão que resultaria disso. Brigas, ofensas, mágoas, tudo parece um processo em que nós nos obrigamos a tomar atitudes que fundamentarão toda a nossa vida a partir daquele momento, apontando, ou para a felicidade, ou para a desgraça total.
Nunca fui de muitas amizades. Aliás, acho improvável que qualquer ser humano normal tenha, durante a vida, mais do que cinco ou seis amigos, daqueles de verdade. Durante a infância e a adolescência, tive pelo menos dois, em muita coisa opostos, mas que estiveram comigo em quase todos os momentos difíceis, desde a mudança de escola até o primeiro emprego. Sérgio era o mais expansivo; Henrique fazia o gênero ranzinza. Ainda que amigos, poucas vezes tivemos experiências em comum, talvez pela diferença de temperamentos que nos levava a posições, várias vezes, antagônicas. No geral, era eu o mediador, justamente o menos capaz de tomar qualquer tipo de decisão, quanto mais a que fosse correta ou conveniente. Uma vez, no entanto, tivemos de atuar juntos, ou quase.
Foi numa época em que a moda, entre nós, era jogar cartas. Nem importava muito o jogo, até porque não havia interesse monetário; éramos apenas um grupo de adolescentes competindo entre si para ver quem era o mais esperto ou o mais sortudo. Meus pais haviam saído, de modo que a casa era toda nossa. E, dentre as muitas bobagens que jovens são capazes de fazer quando se pilham sozinhos, alguns de nós escolheram a pior: beber. Sérgio estava nesse grupo. No começo, era difícil resistir ao rosto sorridente e redondo de nosso amigo, embalado por alguns goles de um vinho barato que alguém havia trazido. Os amendoins e as batatas fritas, que deveriam durar a tarde toda, estavam sendo devorados com uma velocidade inimaginável pelos que bebiam. Apenas Henrique e eu, sóbrios, acompanhávamos a escalada da euforia; no começo, divertidos; com o tempo, apreensivos. Sérgio parecia estar perdendo o controle, o que foi notado pelos demais: tudo o que fazia era olhar para as cartas que tinha na mão e rir, rir muito. Por melhor que fosse o jogo, não creio que houvesse motivo para tanta alegria, a não ser...
— Um bando de palhaços!, disse Sérgio.
— Como é que é?, perguntamos.
— Palhaços. O valete, a dama, o rei, o coringa... Ôrra, meu, cada figura esquisita!
O que fizemos foi trocar sensações de desamparo; nunca havíamos passado por aquilo. Nossos olhares se voltaram para o Nélson, um dos que trouxera as bebidas, e o mais experiente da turma. Sua tranqüilidade, seu autocontrole, seu senso de responsabilidade, com certeza, nos tirariam daquela situação complicada. Ele, levantando-se rapidamente, fez soar sua decisão:
— Bom, pessoal, hora de se mandar!
Se mandar? Mas que negócio era aquele? Nosso amigo ali, bancando o ridículo, mal podendo ficar sentado, quanto mais de pé, e a solução era ir embora? Além do mais, aquilo estava acontecendo em minha casa, e eu é que teria explicações a dar se o Sérgio, sei lá, desmaiasse, entrasse em coma, morresse. Além disso, onde deixaríamos o cadáver? Pensei no terreno baldio perto dali, mas foi um instante só. Logo voltei à realidade, constatando que, como bons adolescentes, estávamos, literalmente, entrando em pânico. Vozes se alternavam:
— Banho frio. Me disseram que banho frio é bom pra essas coisas.
— É, mas café é melhor pro cara acordar.
— Ele está dormindo?
— Bom, quando a gente deita no chão...
— Onde?!
—Ali, debaixo da mesa.
Com o coração dividido entre a batedeira e a geladeira, ou seja, entre a taquicardia e a síncope, decidimos aplicar todos os truques que conhecíamos para recuperar nosso amigo. Henrique, até então calado, lançou sua nota de sabedoria:
— Eu não falei? Só tinha que dar nisso mesmo! É o que dá não saber respeitar os limites!
— Limites? Que limites?, falei, enquanto tentava fazer com nosso bêbado debutante bebesse um pouco do café que havíamos preparado.
— Os limites, ora!, encerrou Henrique, balançando a cabeça.
Confesso que o mais difícil foi colocar o Sérgio no chuveiro, já que esse negócio de tirar roupa de homem não fazia parte de nosso cotidiano. Enfim, depois de muita luta e recomendações, deixamos o sujeito lá dentro, ainda vestido, rezando para que a água fria não o pusesse em estado de choque. Minutos de ansiedade se passaram até que a porta do banheiro se abriu, mostrando uma figura deplorável, os cabelos e as roupas pingando, e um riso sem graça nos lábios. Ainda trôpego, mas menos bêbado, Sérgio tentava se desculpar:
— Ô, pessoal, mancada, heim?, disse, enquanto se sentava.
O caso é que ele não se sentou. Digo melhor: desabou na cadeira e caiu direto ao chão, adquirindo a densidade do plasma. Não sei por quê, mas me lembrei também das aulas de biologia: nosso amigo era a encarnação da matéria protéica inerte, sem vontade própria. Entre a queda e esse pensamento, a debandada foi quase total: Nélson alegou uma dor de cabeça repentina, Walter tinha a lição de matemática para fazer, o Pedro esquecera a torneira do banheiro aberta. Ficamos somente o Henrique e eu. Além, é óbvio, de nosso incômodo bebum.
— E agora?, perguntei.
— Ele vomitou no banheiro. Bom, pelo menos acertou no vaso
Uma das figuras de linguagem mais recorrente em minhas relações fraternais era, sem dúvida, a ironia. Por outro lado, talvez ele estivesse falando aquilo a sério. Porque uma das coisas que mais me surpreendia no Henrique era sua capacidade quase única de ver a realidade sem qualquer maquiagem, extraindo dos fatos apenas o que eles continham de concreto.
— Vai morrer.
— Tá brincando!
— Você vai morrer se não arrumar essa bagunça. Olha o banheiro! A sala, então... E, balançando a cabeça: é o que dá passar dos limites.
Não agüentei aquele tom de sermão paterno adiantado. Afinal, já que eu tinha de levar a bronca, que ao menos fosse do titular, e não de um regra três qualquer. Com meus brios sacudidos, como diria o cronista, resolvi dar um basta naquela empulhação:
— Escuta, já tô por aqui com esse papo de “limites”, tá legal? Você só fala, fala, fala, mas fazer que é bom, nada! Quer saber? Por que você não foi embora junto com os outros? Pelo menos eu não tinha que ficar te agüentando aqui, me torrando! Sou eu que vou me ferrar, mesmo, não é?
Faltava um golpe final, uma frase arrasadora que colocaria aquele imbecil de uma vez por todas em seu lugar, aniquilando aquela existência miserável, alguma coisa do tipo...
— Pô, Henrique, me ajuda!
Por alguns segundos, os mais longos de minha vida até então, Henrique me olhou seriamente. Contemplou os copos sobre a mesa, as cartas espalhadas, bitucas de cigarros, a massa amorfa que um dia tinha sido nosso amigo, a água que ele trouxera do banheiro. Quando percebi, havia um sorriso em seu rosto, um sorriso meio gozador, meio solidário, não soube dizer exatamente qual seria, em meio a meu desespero.
— Se a gente começar agora acho que dá tempo até seus pais chegarem.
Não acreditei no que ouvi, pelo menos durante o pasmo inicial. Logo em seguida, porém, e mesmo sem compreender direito o que levara Henrique a mudar de humor, limpei, digo, limpamos todos os vestígios de nossa imprudência. Ao fim, restava apenas um, o mais pesado. Este, depois de mil pedidos de desculpas de nossa parte, foi entregue a seu pai, que, avalio, deve ter dado boas risadas com o ocorrido, passada a tempestade do primeiro momento.
Aquele dia, contudo, me marcou pela oportunidade de travar contato com um Henrique até então desconhecido. Ele, que não representava para mim mais que um colega muito mal-humorado, passara a ser uma pessoa com quem se podia contar, para os bons e maus momentos. Henrique me ensinara mais um passo na complicada arte da amizade. Com sua casmurrice, sua sinceridade irritante, mas, sobretudo, com sua tolerância, ele criou o elo que nos manteria unidos nos quase quinze anos seguintes, depois dos quais cada um de nós seguiu o seu caminho, seja lá para onde ele apontasse. Mas após tanto tempo, penso, algo satisfeito, que eu também lhe ensinei alguma coisa. O valor de um bom grito na hora certa, quem sabe? Ou a percepção dos limites da paciência alheia (no caso, a minha). Prefiro ser menos modesto, entretanto; digamos que, comigo, Henrique pôde exercer um pouco sua parte afetiva, escondida atrás da máscara da severidade nipônica tão longamente cultivada. Sem querer, ajudei meu amigo a romper um limite, mesmo que timidamente, e só naquela ocasião.
Nos anos seguintes, ainda aprenderíamos muito um com o outro, enquanto nossos egos cresciam e nossos olhos se voltavam para direções diversas. Jogamos futebol juntos, compartilhamos angústias amorosas, vivenciamos nossas dúvidas existenciais, até um dia em que deixamos de nos ver, de nos falar, de nos preocupar mutuamente com nosso bem-estar. Recentemente, pude vê-lo passando apressado pela rua. Esbocei um chamado, mas ele estava longe, talvez não me tivesse visto, ou preferisse mesmo não me ver. Eu poderia tê-lo alcançado, se quisesse, mas apenas observei-o dobrando a esquina seguinte, sumindo de minha vista. Creio que – é quase certo – talvez tenha sido melhor assim, somente a lembrança da amizade servindo de sustento para nosso afeto, de uma época em que romper limites pedia muito mais que coragem. A verdade é que não resistiríamos a nossos próprios fantasmas, à certeza de que o tempo passou e plantou raízes definitivas em todos nós, transformando-nos em homens vagos e insensíveis. Parece contradição, eu sei; mas quem disse que a vida não tem dessas coisas?
6 de junho de 2006
Outra reedição...
Também publicado no falecido blogue, ainda hoje este pequeno escrito me parece dizer respeito. Menos aos sentimentos nele envolvidos, mas muito mais pelos significados que acabei, digamos, "embutindo" em seus meandros... Boa leitura!
“O medo do goleiro”
Todos já tiveram, sem exceção, ao menos um grande amor na vida. Ainda que limitado a uma única experiência – em geral adolescente; em alguns casos na fase madura – vivenciar o nascimento disso que será o tormento fundamental da existência humana é, sem dúvida, uma daquelas coisas que se farão imprescindíveis na educação sentimental de qualquer ser humano que se preze. Na minha vida, o primeiro desses grandes amores talvez se localize num período entre meus oito e quatorze anos, início da década de 70, logo que comecei a estudar numa escola estadual, recém-reformada – por dentro e por fora – pelo governo.
Conheci Márcia numa sala de aula, segundo ano do antigo primário, hoje primeiro grau. Éramos bem umas trinta ou quarenta crianças, todas muito parecidas em suas carências e capacidades. Num tempo em que os hormônios pareciam só vir depois dos treze ou quatorze anos, sermos "crianças" não chegava a ser bem uma ofensa. Naturalmente, havia algumas mais desenvolvidas que outras, mas nada que chegasse a atrapalhar uma certa homogeneidade próxima à do leite Ninho Instantâneo. Mas ela estava lá, destacando-se no meio daquele perigo de algazarra, com seu perfil arrebitado, num orgulho ainda sem consciência, balançando os cabelos... vá lá: claros, um ouro impuro mas brando em meus olhos castanhos. Sei que foi ali, naquele lugar, um segundo da esperança que ela ergueu, um sorriso e o exercício de matemática sem solução, foi bem ali que passei a amar secretamente Márcia e seus mistérios.
Até o grande incidente que inaugurou nosso período de separação, por volta dos treze anos, havia – não sei bem como dizer – havia sempre um clima de entendimento entre nós dois. Por imposições escolares, Márcia e eu costumávamos nos ver cotidianamente, na casa de nossa professora. Eu, como o melhor aluno da classe na época, bem entendido; Márcia como sobrinha-neta. Isso desde os oito anos de idade, uma convivência pacífica, ainda que cercada de cuidados de minha parte, sem saber exatamente o que me impelia a querer ficar mais e mais a cada dia, sentindo o perfume do banho tomado, um conforto incômodo que emanava de minha amiga, misturando regras gramaticais e ciências naturais, geografia e história em estudos sociais. O fato é que Márcia era uma presença maior que o Ultra-Seven em minhas tardes sem lição de casa ou futebol na rua. Sei que parece idiota, talvez fosse mesmo, porque todos o éramos naqueles tempos incontestáveis; mas Márcia e eu formávamos alguma coisa boa, de que eu não sabia precisar a exata matéria.
Isso, até o primeiro rompimento, objeto de outro relato, já antigo. Algum tempo mais tarde, ambos entrados na adolescência, voltamos a estudar na mesma sala. De início, separados por uma torrente de amigos e inimigos, por comportamentos e, principalmente, por uma espécie de namoro que ela começara no ano anterior, com um dos chamados "repetentes", numa época em que isso era motivo de estigmatização por parte de todos. Rubão, era como o chamávamos nós, os "estudiosos", por motivos que iam da obviedade até o obscuro das conversas maliciosas. Seja como for, nada me parecia tão distante quanto Márcia de braços dados com Rubão, e pensamentos nada românticos se pendurando no trapézio machadiano de minha cabeça me diziam que eu nunca mais conquistaria Márcia, que era assim mesmo, o mundo pertencia aos mais fortes. Bem, não diria o mundo todo, mas pelo menos sua parte feminina, que era o que importava naquele momento. O fato é que minha outrora amiga como que parecia se comprazer de desfilar com os músculos de Rubão diante, principalmente, de mim, recolhido num canto do pátio com minha magreza de não-esportista, junto a meus iguais.
Naquele ano, o último de nossa inocência, a direção da escola resolveu promover um campeonato interno de futebol de salão, e o torneio da oitava série envolvia apenas quatro classes, entre elas a minha. Em princípio, nada que me dissesse respeito, até sabermos que a condição sine qua non para participar era o desempenho, digamos, acadêmico. Traduzindo: notas baixas, "vermelhas", como dizíamos, excluíam o pelejador do time. Traduzindo a tradução: fui alçado à categoria de titular, eu que, apesar de gostar do esporte, nunca me considerei nada além de um jogador esforçado. Apesar disso, e para resumir a história, conseguimos levar o torneio até uma partida de desempate com a classe favorita, aquela em que jogava – adivinharam – Rubão, inacreditavelmente isento das sanções escolares. Na torcida, outra obviedade desta história: Márcia. O jogo prometia ser um massacre, já que Rubão e companhia, mordidos pela derrota diante de nós no jogo anterior, juravam vingança. Para aumentar o clima de perigo, uma garoa já não tão paulistana tornava o piso da quadra tão seguro quanto amor de adolescente. Com tudo isso, havia entre os jogadores de nosso time, talvez mais em mim que nos demais, um desejo, uma esperança, quem sabe uma confiança de vencer, de mostrar uma capacidade que nós mesmos desconhecíamos, e Márcia ali sentada, olhando para mim, para Rubão, eu não tinha bem certeza, sei que essa vontade foi tomando conta da gente, próximos à beira do milagre, que é o que esperávamos. A verdade é que o jogo começou nervoso, nós apenas tentando impedir que o adversário fizesse o gol, até, num instante distraído, a bola sobrar para mim, cara a cara com o goleiro, e eu acertar o chute com raiva calculada, um a zero. Então, quase sem querer, meus olhos se voltaram para Márcia, ignoro com que intenção, e não vi nada, ou melhor, vi exatamente isso: nada. A Márcia que eu conhecera e amara, isso eu percebia naquele momento, ainda que não tivesse palavras para o dizer, aquela Márcia não existia mais, pode ser que nunca tivesse existido, fruto de desejos infantis e adolescentes, só sei que minha Márcia passou a ser apenas uma imagem emoldurada no quarto de meus fantasmas pessoais, tamanha a impressão causada por aquele olhar, o primeiro de muitos que eu teria de enfrentar na vida.
Depois daquilo, a partida não fazia mais qualquer diferença, ao menos para mim. Tudo se quebrara, sem solda ou cola possível que não o tempo, mas não somente os dois de um jogo de futebol. Vencemos, para não se dizer que a perda foi total. Vencemos os favoritos, levamos a taça, as medalhas, as pequenas glórias de nossos quatorze anos. Vencemos, sobretudo, nossos temores mais evidentes. Mas aquele gol marcou um fim e um começo, que só hoje sou capaz de compreender em todas as implicações. As mulheres movem a vida, afinal, e isso eu percebi quando Márcia beijou um Rubão desconsolado naquela noite plena de vitórias, derrotas, e novos saberes. As medalhas e a taça sumiram com o passar do tempo, assim como meus companheiros de jornada, muitos ainda vivos, outros nem tanto. De minha ex-amiga, soube, recentemente, estar casada e feliz, longe de Rubão. O beijo de Márcia, esse, no entanto, está comigo até hoje, marcado na pele e nos olhos assombrados pelo desejo. Mudo. Como o medo do goleiro na hora do gol.
“O medo do goleiro”
Todos já tiveram, sem exceção, ao menos um grande amor na vida. Ainda que limitado a uma única experiência – em geral adolescente; em alguns casos na fase madura – vivenciar o nascimento disso que será o tormento fundamental da existência humana é, sem dúvida, uma daquelas coisas que se farão imprescindíveis na educação sentimental de qualquer ser humano que se preze. Na minha vida, o primeiro desses grandes amores talvez se localize num período entre meus oito e quatorze anos, início da década de 70, logo que comecei a estudar numa escola estadual, recém-reformada – por dentro e por fora – pelo governo.
Conheci Márcia numa sala de aula, segundo ano do antigo primário, hoje primeiro grau. Éramos bem umas trinta ou quarenta crianças, todas muito parecidas em suas carências e capacidades. Num tempo em que os hormônios pareciam só vir depois dos treze ou quatorze anos, sermos "crianças" não chegava a ser bem uma ofensa. Naturalmente, havia algumas mais desenvolvidas que outras, mas nada que chegasse a atrapalhar uma certa homogeneidade próxima à do leite Ninho Instantâneo. Mas ela estava lá, destacando-se no meio daquele perigo de algazarra, com seu perfil arrebitado, num orgulho ainda sem consciência, balançando os cabelos... vá lá: claros, um ouro impuro mas brando em meus olhos castanhos. Sei que foi ali, naquele lugar, um segundo da esperança que ela ergueu, um sorriso e o exercício de matemática sem solução, foi bem ali que passei a amar secretamente Márcia e seus mistérios.
Até o grande incidente que inaugurou nosso período de separação, por volta dos treze anos, havia – não sei bem como dizer – havia sempre um clima de entendimento entre nós dois. Por imposições escolares, Márcia e eu costumávamos nos ver cotidianamente, na casa de nossa professora. Eu, como o melhor aluno da classe na época, bem entendido; Márcia como sobrinha-neta. Isso desde os oito anos de idade, uma convivência pacífica, ainda que cercada de cuidados de minha parte, sem saber exatamente o que me impelia a querer ficar mais e mais a cada dia, sentindo o perfume do banho tomado, um conforto incômodo que emanava de minha amiga, misturando regras gramaticais e ciências naturais, geografia e história em estudos sociais. O fato é que Márcia era uma presença maior que o Ultra-Seven em minhas tardes sem lição de casa ou futebol na rua. Sei que parece idiota, talvez fosse mesmo, porque todos o éramos naqueles tempos incontestáveis; mas Márcia e eu formávamos alguma coisa boa, de que eu não sabia precisar a exata matéria.
Isso, até o primeiro rompimento, objeto de outro relato, já antigo. Algum tempo mais tarde, ambos entrados na adolescência, voltamos a estudar na mesma sala. De início, separados por uma torrente de amigos e inimigos, por comportamentos e, principalmente, por uma espécie de namoro que ela começara no ano anterior, com um dos chamados "repetentes", numa época em que isso era motivo de estigmatização por parte de todos. Rubão, era como o chamávamos nós, os "estudiosos", por motivos que iam da obviedade até o obscuro das conversas maliciosas. Seja como for, nada me parecia tão distante quanto Márcia de braços dados com Rubão, e pensamentos nada românticos se pendurando no trapézio machadiano de minha cabeça me diziam que eu nunca mais conquistaria Márcia, que era assim mesmo, o mundo pertencia aos mais fortes. Bem, não diria o mundo todo, mas pelo menos sua parte feminina, que era o que importava naquele momento. O fato é que minha outrora amiga como que parecia se comprazer de desfilar com os músculos de Rubão diante, principalmente, de mim, recolhido num canto do pátio com minha magreza de não-esportista, junto a meus iguais.
Naquele ano, o último de nossa inocência, a direção da escola resolveu promover um campeonato interno de futebol de salão, e o torneio da oitava série envolvia apenas quatro classes, entre elas a minha. Em princípio, nada que me dissesse respeito, até sabermos que a condição sine qua non para participar era o desempenho, digamos, acadêmico. Traduzindo: notas baixas, "vermelhas", como dizíamos, excluíam o pelejador do time. Traduzindo a tradução: fui alçado à categoria de titular, eu que, apesar de gostar do esporte, nunca me considerei nada além de um jogador esforçado. Apesar disso, e para resumir a história, conseguimos levar o torneio até uma partida de desempate com a classe favorita, aquela em que jogava – adivinharam – Rubão, inacreditavelmente isento das sanções escolares. Na torcida, outra obviedade desta história: Márcia. O jogo prometia ser um massacre, já que Rubão e companhia, mordidos pela derrota diante de nós no jogo anterior, juravam vingança. Para aumentar o clima de perigo, uma garoa já não tão paulistana tornava o piso da quadra tão seguro quanto amor de adolescente. Com tudo isso, havia entre os jogadores de nosso time, talvez mais em mim que nos demais, um desejo, uma esperança, quem sabe uma confiança de vencer, de mostrar uma capacidade que nós mesmos desconhecíamos, e Márcia ali sentada, olhando para mim, para Rubão, eu não tinha bem certeza, sei que essa vontade foi tomando conta da gente, próximos à beira do milagre, que é o que esperávamos. A verdade é que o jogo começou nervoso, nós apenas tentando impedir que o adversário fizesse o gol, até, num instante distraído, a bola sobrar para mim, cara a cara com o goleiro, e eu acertar o chute com raiva calculada, um a zero. Então, quase sem querer, meus olhos se voltaram para Márcia, ignoro com que intenção, e não vi nada, ou melhor, vi exatamente isso: nada. A Márcia que eu conhecera e amara, isso eu percebia naquele momento, ainda que não tivesse palavras para o dizer, aquela Márcia não existia mais, pode ser que nunca tivesse existido, fruto de desejos infantis e adolescentes, só sei que minha Márcia passou a ser apenas uma imagem emoldurada no quarto de meus fantasmas pessoais, tamanha a impressão causada por aquele olhar, o primeiro de muitos que eu teria de enfrentar na vida.
Depois daquilo, a partida não fazia mais qualquer diferença, ao menos para mim. Tudo se quebrara, sem solda ou cola possível que não o tempo, mas não somente os dois de um jogo de futebol. Vencemos, para não se dizer que a perda foi total. Vencemos os favoritos, levamos a taça, as medalhas, as pequenas glórias de nossos quatorze anos. Vencemos, sobretudo, nossos temores mais evidentes. Mas aquele gol marcou um fim e um começo, que só hoje sou capaz de compreender em todas as implicações. As mulheres movem a vida, afinal, e isso eu percebi quando Márcia beijou um Rubão desconsolado naquela noite plena de vitórias, derrotas, e novos saberes. As medalhas e a taça sumiram com o passar do tempo, assim como meus companheiros de jornada, muitos ainda vivos, outros nem tanto. De minha ex-amiga, soube, recentemente, estar casada e feliz, longe de Rubão. O beijo de Márcia, esse, no entanto, está comigo até hoje, marcado na pele e nos olhos assombrados pelo desejo. Mudo. Como o medo do goleiro na hora do gol.
2 de junho de 2006
Reeditando um escrito...
Isto já foi publicado no blogue falecido, mas como aqui é tudo novo, achei melhor reeditá-lo. Aproveitem para reler a bagaça.
Dos limites ou: A metafísica dos barbeiros
Quando nasce a vaidade humana? Uns dizem que é inata; nascemos com ela e, à medida que dela necessitamos – quando o instinto de preservação da espécie assim o exige – se mostra, bela e resplandecente. Outros afirmam que seu surgimento se dá a partir da consciência da sexualidade, daí as crianças de hoje serem tão zelosas de sua aparência – as apresentadoras da TV estariam aí para confirmar essa posição teórica. Isso nos leva a concluir que o sexo, para variar, seria a motivação, não só da vaidade, mas de todos os comportamentos animais (humanos incluídos). Essa constatação, conquanto não respondesse com objetividade à minha pergunta, ao menos poderia servir de consolo quando eu, aos doze anos, era obrigado a cortar o cabelo por imposição paterna.
Parafraseando Mário de Andrade, diria que meu pai era um desmancha-prazeres cinzento, ainda que esse matiz não traduzisse o grau repressivo de seu caráter. Tendo passado por todas as fases do desenvolvimento infantil na sua relação com a figura paterna, ou seja, percebendo que a realidade brutal me impusera aquele homem como o grande carma de minha vida, era com inconformismo que me via obrigado a seguir um modelo imposto de corte de cabelo. Ora, estávamos em 1974, víamos os Secos e Molhados, o glitter rock estava no auge, o Led Zeppelin estourava nas paradas, e não era possível que só eu me visse alijado daquela tendência de longos cabelos (já que as idéias, na época, eram bem curtas...).
Além disso, havia as garotas: como impressioná-las sem o aparato (no bom sentido) necessário? Fora se vestir bem, era preciso ter cabelos longos. Como usávamos uniformes na escola, percebe-se que o primeiro item já estava prejudicado, ainda que todos os alunos fizessem uso dos limites permitidos nas medidas das roupas: barra com abertura máxima de 21 centímetros – no caso de calças; e saia até um palmo acima do joelho. Mesmo os cabelos não podiam ser muito compridos e, embora não houvesse regras explícitas, todos supúnhamos um tamanho "x" que se afigurasse como aceitável e pronto. Mas nem isso meu pai me permitia, é claro.
De modo que, uma vez por mês, o sacrifício de cortar minhas madeixas (que nem madeixas eram, mas tudo bem) impunha-se como ordem superior, divina, incontestável. E, contrariando o ditado que diz que as coisas não podem ficar piores, havia um barbeiro perto de casa especialmente escolhido para esse fim macabro. Por sinal, o próprio nome da atividade tinha alguma coisa de sinistro: nunca me esquecera a leitura dos livros de ciência, que davam notícia da existência de um inseto, transmissor da doença de Chagas, que recebia a mesma denominação do profissional citado. Outro dado estarrecedor era a antiga prática do uso de sanguessugas, quando os barbeiros faziam papel de médicos. Alguma coisa me dizia que aquilo ainda era praticado, em nossos tempos, ainda que sob disfarces sutis, sabe-se lá como.
Pois bem: eu já era vaidoso o suficiente para perceber que aquele tipo de imposição teria de acabar, sob pena de nunca sentir o gosto do beijo de uma garota, e o que viesse depois disso. Entrei no pequeno recinto disposto a modificar o jogo a meu favor. Sentei-me, aguardei aquela amarração incômoda de panos e disparei, tentando ser o mais convincente possível:
— Olha, me corta bem pouquinho, tá?
O sujeito parou, fitou-me atentamente e devolveu:
— Como? Fala mais alto, menino!
Duas complicações: não me ouvira e me chamara de "menino". Se havia uma coisa que me punha fora do sério era ser chamado daquela maneira. (Hoje, o mesmo efeito pode ser alcançado por quem me chama de "japonês". Pode parecer lógico, mas nem de longe é verdadeiro – sem contar a carga de preconceito embutida.) Diante daquilo, resolvi ser mais impositivo:
— Se o senhor puder, corta só um dedo, pode ser?
Evidentemente o pedido foi feito no sentido figurado. A reação do homem, entretanto, quase parecia indicar o oposto:
— Ué, então pra que você veio aqui, menino?
Descobri, do modo mais desastroso, que barbeiros são seres extremamente sensíveis no que diz respeito a sua atividade profissional. Ou seja: existe, em todos, uma vontade, uma volúpia, quem sabe uma tara de origem ancestral, que os leva a querer desbastar completamente a cobertura capilar do freguês, o que é – no mínimo – um contra-senso, pensando bem. Se você pede "dois dedos", cortam três; se deseja só "um acerto de corte", são capazes de ter chiliques. Não me intimidei, contudo. Naquele momento que me pareceu decisivo, encarei-o firmemente, dizendo:
— Vim cortar o cabelo, ora essa! – E, antes que ele movimentasse a tesoura: mas do meu jeito, pode ser?
E foi assim, orientando aquele homem sem imaginação, que eu cometi a primeira das minhas grandes desobediências, a primeira de muitas de um trajeto longuíssimo que não sei se terminará tão cedo. É certo, também, que os cabelos mais longos não me trouxeram nada daquilo que eu esperava. Mas foram uma conquista. Pequena, efêmera, fútil, mas uma conquista. Outras vieram, assim como derrotas desanimadoras, e não sei se o saldo é ou não favorável a mim, atualmente. A batalha dos cabelos, estopim de todas as outras, no entanto, eu só perderia para o tempo, pai de todos os deuses. Mas desse, infelizmente, eu não poderia me livrar.
Dos limites ou: A metafísica dos barbeiros
Quando nasce a vaidade humana? Uns dizem que é inata; nascemos com ela e, à medida que dela necessitamos – quando o instinto de preservação da espécie assim o exige – se mostra, bela e resplandecente. Outros afirmam que seu surgimento se dá a partir da consciência da sexualidade, daí as crianças de hoje serem tão zelosas de sua aparência – as apresentadoras da TV estariam aí para confirmar essa posição teórica. Isso nos leva a concluir que o sexo, para variar, seria a motivação, não só da vaidade, mas de todos os comportamentos animais (humanos incluídos). Essa constatação, conquanto não respondesse com objetividade à minha pergunta, ao menos poderia servir de consolo quando eu, aos doze anos, era obrigado a cortar o cabelo por imposição paterna.
Parafraseando Mário de Andrade, diria que meu pai era um desmancha-prazeres cinzento, ainda que esse matiz não traduzisse o grau repressivo de seu caráter. Tendo passado por todas as fases do desenvolvimento infantil na sua relação com a figura paterna, ou seja, percebendo que a realidade brutal me impusera aquele homem como o grande carma de minha vida, era com inconformismo que me via obrigado a seguir um modelo imposto de corte de cabelo. Ora, estávamos em 1974, víamos os Secos e Molhados, o glitter rock estava no auge, o Led Zeppelin estourava nas paradas, e não era possível que só eu me visse alijado daquela tendência de longos cabelos (já que as idéias, na época, eram bem curtas...).
Além disso, havia as garotas: como impressioná-las sem o aparato (no bom sentido) necessário? Fora se vestir bem, era preciso ter cabelos longos. Como usávamos uniformes na escola, percebe-se que o primeiro item já estava prejudicado, ainda que todos os alunos fizessem uso dos limites permitidos nas medidas das roupas: barra com abertura máxima de 21 centímetros – no caso de calças; e saia até um palmo acima do joelho. Mesmo os cabelos não podiam ser muito compridos e, embora não houvesse regras explícitas, todos supúnhamos um tamanho "x" que se afigurasse como aceitável e pronto. Mas nem isso meu pai me permitia, é claro.
De modo que, uma vez por mês, o sacrifício de cortar minhas madeixas (que nem madeixas eram, mas tudo bem) impunha-se como ordem superior, divina, incontestável. E, contrariando o ditado que diz que as coisas não podem ficar piores, havia um barbeiro perto de casa especialmente escolhido para esse fim macabro. Por sinal, o próprio nome da atividade tinha alguma coisa de sinistro: nunca me esquecera a leitura dos livros de ciência, que davam notícia da existência de um inseto, transmissor da doença de Chagas, que recebia a mesma denominação do profissional citado. Outro dado estarrecedor era a antiga prática do uso de sanguessugas, quando os barbeiros faziam papel de médicos. Alguma coisa me dizia que aquilo ainda era praticado, em nossos tempos, ainda que sob disfarces sutis, sabe-se lá como.
Pois bem: eu já era vaidoso o suficiente para perceber que aquele tipo de imposição teria de acabar, sob pena de nunca sentir o gosto do beijo de uma garota, e o que viesse depois disso. Entrei no pequeno recinto disposto a modificar o jogo a meu favor. Sentei-me, aguardei aquela amarração incômoda de panos e disparei, tentando ser o mais convincente possível:
— Olha, me corta bem pouquinho, tá?
O sujeito parou, fitou-me atentamente e devolveu:
— Como? Fala mais alto, menino!
Duas complicações: não me ouvira e me chamara de "menino". Se havia uma coisa que me punha fora do sério era ser chamado daquela maneira. (Hoje, o mesmo efeito pode ser alcançado por quem me chama de "japonês". Pode parecer lógico, mas nem de longe é verdadeiro – sem contar a carga de preconceito embutida.) Diante daquilo, resolvi ser mais impositivo:
— Se o senhor puder, corta só um dedo, pode ser?
Evidentemente o pedido foi feito no sentido figurado. A reação do homem, entretanto, quase parecia indicar o oposto:
— Ué, então pra que você veio aqui, menino?
Descobri, do modo mais desastroso, que barbeiros são seres extremamente sensíveis no que diz respeito a sua atividade profissional. Ou seja: existe, em todos, uma vontade, uma volúpia, quem sabe uma tara de origem ancestral, que os leva a querer desbastar completamente a cobertura capilar do freguês, o que é – no mínimo – um contra-senso, pensando bem. Se você pede "dois dedos", cortam três; se deseja só "um acerto de corte", são capazes de ter chiliques. Não me intimidei, contudo. Naquele momento que me pareceu decisivo, encarei-o firmemente, dizendo:
— Vim cortar o cabelo, ora essa! – E, antes que ele movimentasse a tesoura: mas do meu jeito, pode ser?
E foi assim, orientando aquele homem sem imaginação, que eu cometi a primeira das minhas grandes desobediências, a primeira de muitas de um trajeto longuíssimo que não sei se terminará tão cedo. É certo, também, que os cabelos mais longos não me trouxeram nada daquilo que eu esperava. Mas foram uma conquista. Pequena, efêmera, fútil, mas uma conquista. Outras vieram, assim como derrotas desanimadoras, e não sei se o saldo é ou não favorável a mim, atualmente. A batalha dos cabelos, estopim de todas as outras, no entanto, eu só perderia para o tempo, pai de todos os deuses. Mas desse, infelizmente, eu não poderia me livrar.
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