4 de julho de 2008

Entrevista

Ninguém perguntou, mas como o blogue é meu mesmo, segue a entrevista que concedi à jornalista Francis Neves, publicada, em parte, no jornal laboratório do curso de Jornalismo da Unesp. O texto original foi modificado e aumentado, não alterando, contudo, sua essência. Boa leitura.

Pergunta: Qual parente seu veio diretamente do Japão? Como ele relata esta experiência?
R.: Meus avós, tanto os paternos quanto os maternos, vieram do Japão. Infelizmente, todos já faleceram. Os relatos que ficaram, sujeitos evidentemente às distorções de memória e acidentes de percurso, não diferem dos demais depoimentos de outros imigrantes. Falam dos tempos difíceis de adaptação à alimentação, clima, costumes e idioma. Meu avô paterno teria sido um dos fundadores da cidade de Assaí-PR, e lá ele teria sido uma espécie de micro-empresário na época, com fábricas de sorvete e refrigerantes (em épocas distintas). A repressão surgida principalmente durante a 2ª. Guerra parece ter sido mais intensa na região interiorana do Brasil, pelo que pude ouvir quando era criança. Aqui em São Paulo, onde minha mãe nasceu, ela teria sido um pouco menos explícita – uma de minhas tias casou-se com um descendente de alemães, e isso no final dos anos de 1950, quando esse comportamento não era dos mais aceitos entre os nipo-brasileiros.
P.: Como foi a adaptação do imigrante?
R.: Conforme disse antes, teria sido difícil. Não bastasse a má vontade das autoridades locais em relação aos japoneses, as diferenças eram enormes em relação a todos os aspectos da vida social. Ainda hoje, de certo modo, essas particularidades permanecem.
P.: Neste ano de 2008, duas escolas de samba (a Unidos da Vila Maria, em SP, e a Porto da Pedra, no RJ) retrataram o Japão no Carnaval. O que o senhor acha destes desfiles? Qual a importância deles para a comunidade nipônica no Brasil?
R.: Da minha perspectiva, a apropriação do tema por duas escolas de samba só se explica por conta do marketing em torno disso, a tal comemoração em torno dos 100 anos da imigração e o dinheiro que isso pode gerar. Claro que contribui para essa visão o fato de eu ter ojeriza pelo Carnaval, ainda que veja nele a plena expressão de um modo de ser "nosso" - para o bem e para o mal. Veja que o simples fato de eu dizer “nosso” já levantaria, por parte de muita gente, uma série de manifestações indignadas, primeiro por eu não gostar de Carnaval – o que confirmaria minha condição alienígena; segundo, por tomar como “meu” algo que os nacionais (como se eu não tivesse essa condição também) desejam exclusivamente para eles. A expressão “tem japonês no samba”, apesar de preconceituosa aos olhos de hoje, ainda diz muito do que muitos pensam a respeito dos nipo-brasileiros. Sinceramente, não vejo nisso nenhuma importância para a dita comunidade nipônica, a não ser fomentar a farsa ilusória de nossa "integração", que nunca – e friso o “nunca” – será plena, é bom reiterar.
P.: Como é a vida dos descendentes? No que difere dos brasileiros "comuns"?
R.: A pergunta, em si, já diz muito, embora eu saiba não ter sido sua intenção fomentar a desavença. Salvo os casos mais peculiares, não me parece haver grandes diferenças. No meu caso em particular, a única coisa que permanece é o hábito de comer arroz feito à moda japonesa – sem óleo nem sal. Me parece, contudo, que a garotada mais nova está voltando a assumir determinados hábitos, mas do Japão moderno, em função dos mangas e dos animes. Isso tem a ver com o fenômeno já velho da globalização, cujos efeitos deletérios ainda não foram totalmente sentidos por nós. Aqui em São Paulo, pelo menos, não vejo diferenças significativas, embora eu saiba haver comunidades no interior do estado que pautam sua vida em manter os costumes tradicionais do Japão, coisa que nem os próprios japoneses de lá mais sabem do que se trata.
P.: Houve alguma discriminação por ser japonês?
R.: Sempre, embora de maneira velada na maior parte das vezes. O que não torna a discriminação menos odiosa, pelo contrário. Veja que só o ato de chamar alguém de "japonês" (como escrevi numa daquelas crônicas no site da Abril) já é, em si, uma forma de discriminação. O que você diria se alguém chegasse numa roda de pessoas e chamasse o rapaz mais moreno de "ô, africano", ou coisa similar? Pois é assim que eu encaro o problema. Muitos dizem que é exagero de minha parte, ao que sempre respondo que, no começo, Hitler era só um sujeito mais excêntrico do que os demais. As desgraças da humanidade nunca começam de uma só vez. E acho hipocrisia os descendentes dizerem, como disseram em algumas reportagens recentemente veiculadas, que não sofreram discriminação ou que levam tudo na brincadeira. Com esse tipo de comportamento não se deveria brincar muito menos relevar.
P.: Em um dos seus textos no site da Abril, o senhor diz que "nunca serei considerado brasileiro - está na cara. Mas também não sou nem nunca serei japonês - e isto está no coração". Eu gostaria que o senhor explorasse essa realidade, que não é exclusividade sua (outros entrevistados meus disseram algo bem parecido!). Como é, então, se sentir assim, meio sem nacionalidade definida? Há coisas boas nesse sentido? R.: Se o mundo fosse um lugar menos injusto, talvez o fato de não pertencer a lugar algum fosse de fato uma vantagem. Mas não é, e cada vez mais parece que as coisas caminham para o aumento dos nacionalismos, dos extremismos, do ódio étnico e tribal. Curioso é que essa "sensação" não ocorre com os demais membros do caldo étnico-cultural brasileiro, não sei se você já reparou nisso. Um negro ou um branco sentem-se perfeitamente "brasileiros", e ninguém contesta a legitimidade disso. Agora, um oriental (e não me refiro aos árabes ou indianos, embora mesmo eles possam ser discriminados, e são), pelas características físicas, está sempre fadado a ser visto como estrangeiro. O fato de eu não saber o idioma japonês, por outro lado, me faria ser discriminado no Japão também, onde eu seria categorizado como "fracassado". Como declarei no texto citado por você, minha dedicação está voltada ao Brasil, pela perspectiva de um olhar crítico sobre nossa sociedade, o que talvez me dê uma visada menos usual, que mestres como Roberto Schwarz (austríaco) e Anatol Rosenfeld (alemão) tiveram a respeito do mesmo assunto. Claro que a comparação é descabida, pela desproporção intelectual entre mim e eles, mas serve como indicação a respeito do que estou tentando dizer. Não faz muito tempo, falei com um conhecido, Jiro Takahashi, a respeito da ausência do assunto "japonês" em meus poemas. Na verdade, foi falta de percepção de minha parte, porque esse assunto sempre esteve ali, e só depois dessa conversa é que me dei conta disso. No caso, sob a forma de textos que sempre falavam do divórcio entre o sujeito e o mundo onde ele vive. Nada mais nipônico do que isso: o sujeito que se isola – e o Japão é uma ilha. Tudo temperado pela experiência do convívio – nem sempre pacífico – com o diferente (e nada mais "brasileiro", no mesmo sentido). Em suma, o deslocamento/descolamento permite enxergar com muita propriedade as contradições irresolvíveis de nossa formação social, mas, ao mesmo tempo, faz com que esse olhar seja o tempo deslegitimado por conta de minha condição “estrangeira”. Isso também diz muito de nosso tempo, em que os nacionalismos temperados por visões fascistóides ou pseudo-socialistas pululam aqui e acolá, esfacelando a suposta integração que a internet e as bolsas de valores trariam, como vaticinaram os ideólogos do neoliberalismo. Aqui no Brasil, como tentei demonstrar, não tem sido muito diferente, e não é essa conversa a respeito do “mútuo respeito” entre os japoneses e os brasileiros que vai mudar minha avaliação. A esse respeito, aliás, li uma carta enviada pelo leitor de uma importante revista semanal, na qual ele reclamava da “falta de agradecimento” da comunidade nipo-brasileira por conta de matéria publicada em “homenagem” aos 100 anos da imigração e à contribuição dos japoneses na vida cultural brasileira. Afinal, disse o leitor, “não me lembro da revista ter feito o mesmo em relação às comunidades italiana, portuguesa etc.” Me perdoe a expressão, mas isso é o primor da grossura e do preconceito embutido sob a forma de civilidade. Civilidade essa que o tal leitor cobra de pessoas que foram vistas, até o início da década de 1950, como “incapazes”, “imprestáveis”, “nocivos à sociedade” e por aí vai. Então, ou se trata de desconhecimento histórico (o que nem por isso redime o leitor de sua grosseria) ou é canalhice mesmo. Acho que são as duas coisas.