16 de junho de 2006

Mais provas de um crime antigo: o de escrever narrativas...

“Teoria do medalhão enviesada ou ‘Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve’”

Acho que quase todo mundo já teve, em sua vida escolar, momentos de sucesso, seja intelectual ou esportivo, seguidos das decorrências naturais desses acontecimentos: admiração, inveja e garotas, nem sempre nessa ordem, muito menos simultaneamente. Uns conseguiam mais, outros menos, conforme sua inteligência e aparência, duas qualidades que dificilmente se achavam juntas numa mesma pessoa. Fato curioso, concordo, nem que visto pelo enfoque de vitamina de preconceitos. No reboque disso, as fantasias e os sonhos, que vão perdendo a ingenuidade à medida em que se sai da infância e batemos todos com a cabeça na fase adolescente, que não tem esse nome por acaso. Se é disso que vou falar? Penso que sim, embora não tenha certeza dos rumos desta história, nem se ela valeria alguma coisa hoje. Enfim, são relatos de outros tempos.
Era meu primeiro ano numa escola pública, estadual, e me surpreendia a quantidade e variedade de tipos humanos no pátio, num maremoto de calças de tergal cinza-escuro e camisas quase brancas dos veteranos contrastando com a luminosidade dos recém-chegados. "Vais encontrar o mundo", diria meu pai, se tivesse lido O Ateneu , o que não era o caso. Deixando de ser o único filho em idade escolar, eu perdera o privilégio relativo do ensino particular, à época ainda inferior a algumas escolas do Estado. Meu pai, como bom representante da etnia nipônica, mantinha uma espécie de pacto conosco, ou seja, aquele que nos obrigava a tirar sempre as melhores notas em todas as matérias. Para ser mais exato, sua expectativa era a de que fôssemos os primeiros da classe, da escola, do bairro, da cidade, do país, do planeta e, se não fosse pedir muito, do universo. Para quem conhece o seriado "Jornada das Estrelas", eu deveria ser uma espécie de sr. Spock mirim. Ou, caso prefiram a "Nova Geração", da mesma série, o Tenente Comandante Data, um andróide. Meu irmão, ignoro se por esperteza ou comodismo, nunca foi o aluno que meu pai desejava em suas maquinações. Eu, ao contrário, me revelei um pequeno gênio escolar, com desempenhos notáveis em todas as disciplinas. Não que me agradasse, propriamente, estudar feito um obstinado; mesmo porque, aos oito anos, você não está em condições de usufruir daquelas vantagens advindas com a notoriedade, referidas logo no início desta história. As garotas, especialmente. Digo isto agora, embora me lembre de ter olhos muito especiais para uma loirinha que se sentava duas fileiras a meu lado, mas que minha timidez cuidou de afastar definitivamente de minha vida. Então era isso: eu estudava por temer represálias traumatizantes, de que meu irmão era vítima, obrigado a ler e reler e refazer exercícios matemáticos e científicos em geral, de sentido e objetivos desconhecidos até para mim, com minha longa experiência de três anos de incessante labuta escolar.
Havia, porém, pedras em meu caminho de estudante de sucesso. Duas, especificamente. Dois, para ser mais preciso. O primeiro se chamava Aílton; o segundo, Nehemias. Incomuns até nos nomes, além de excelentes alunos. A rivalidade entre nós, diferente do que possa parecer, se restringia ao desempenho nas provas. Aílton era o mais próximo de mim, inclusive no sentido espacial, pois éramos quase vizinhos. Magro como salário de professor, e até mais, isso lhe valeu, nos anos seguintes, o criativo apelido de "Osso" (por sinal, alcunha do Dr.McCoy, médico da nave estelar Enterprise, chamado de Bones pelo capitão Kirk). Haveria, nessa coincidência, algum vaticínio? O convívio diário mostrou que não, e mesmo no futebol pelejávamos numa harmonia perfeita maior, errando e acertando o mesmo número de lances. Nada que lembrasse os entreveros entre Spock e McCoy, na série de T.V. Ou tudo, dependendo da interpretação que se dê. Já Nehemias mantinha uma certa distância da turma em geral, embora não deixasse de ser simpático conosco em todas as ocasiões. Se fosse buscar semelhanças contemporâneas, Nehemias seria um Michael Jackson desengonçado, característica que se foi acentuando com o passar do tempo, não sei se por outra coincidência ou por um acidente de percurso, como se diz hoje.
Não bastasse, recapitulando, a pressão paterna e da competição pela primazia das notas, havia também um terceiro componente esmagador, e que nos fitava diariamente, afixado no espaço acima do quadro-negro: o retrato do Presidente da República, com seu olhar austero, logo acompanhado pelo do Ministro da Educação, este menos aterrorizante, embora me parecendo tão onipresente quanto o outro. A verdade é que não havia ocasião em que meu olhar não cruzasse com os dos retratos, tornando minha batalha ainda mais extenuante, visto me sentir obrigado a derrotar dois oponentes e a satisfazer, não apenas um pai, mas três, e todos severíssimos, para meu azar e de todos os demais alunos e não-alunos daquela e de outras escolas e lugares.
Enfim , o ano letivo passou com todos os contratempos previstos e, ao seu final, recebemos o boletim com as notas decisivas. Aílton ficara com a média de 98; Nehemias, com 97; e eu, oh glória das glórias, 100. Impossível dizer, hoje, quais foram minhas sensações naquela ocasião, se experimentei alguma daquelas alegrias catatônicas ou – preso ainda a minha ingenuidade dos oito anos – não atinei com a importância daquilo, ao menos no que diz respeito a pais e mestres. Porque era apenas uma medalha o prêmio por meus esforços. Uma pecinha de cobre ou latão contendo uma frase inscrita: "Honra ao Mérito", de significado longínquo e misterioso, quase cercado daquela aura das obras de arte e objetos sagrados. A fitinha verde e amarela que ornava a peça lembrava-me, para piorar, do caráter patriótico daquela – vá lá que seja – honraria, que não teve qualquer efeito prático imediato em minha vida, a não ser o de complicá-la ainda mais, visto as cobranças em relação a meu desempenho escolar aumentarem em tamanho e qualidade nos anos seguintes, sem que eu conseguisse corresponder a essas, digamos, esperanças. Constatava, entre desconsolado e decepcionado, que teria sido melhor se eu recebesse uma insígnia como aquelas que havia nos uniformes da tripulação da Enterprise. Pertencer à Frota Estelar seria, sem dúvida, mais honroso e menos trabalhoso – pensava eu – que manter o posto de melhor aluno da classe, um lugar muito sem graça e de poucas perspectivas aventureiras ou emocionais.
Aílton, com o tempo, confirmou sua habilidade para com a matemática, mas não teve condições de desenvolvê-la até o infinito. Ou teve, sei lá. Uma onda mais forte o levou e só o devolveu dois dias depois, devidamente lacrado num caixão pobre, num dia muito quente, lembro-me bem disso. Nehemias, perto da oitava série, afastou-se de nós, tornando-se companheiro do chamado "pessoal da bagunça" e assumindo um comportamento que eu, na época, achei estranho e mesmo perigoso, e que só depois fui identificar como sendo homossexual. A meu respeito, posso dizer que a medalha, se algum efeito teve, foi o de me tornar um medroso em relação a conquistas, a sucessos ou coisas que tais. É como se eu visse, nessa possibilidade, uma série de situações de tensão que me seriam insuportáveis, caso viesse a enfrentá-las. Psicologia barata, diria minha querida amiga Luciana, do alto de sua formação profissional. De um modo ou de outro, todos os três fracassamos, por vontade própria talvez, por imposição de um Destino sádico, por um motivo diverso qualquer, ignoro exatamente o quê. E só para encerrar: como toda medalha tem dois ou até três lados, é preciso dizer que, no ano de minha efêmera e incômoda glória, o Brasil sagrou-se tri-campeão mundial de futebol e "Jornada nas Estrelas", a série, completava seu primeiro ano de encerramento, para tristeza de todos os que viam e viviam um pouco além daqueles anos medrosos.

6 comentários:

Anônimo disse...

Belo presente nesta madrugada de insônia.
Adorei.
=)

Carmem Luisa disse...

Que linda mentira.

Anônimo disse...

Pronto, já atualizei Sr. Arquiteto... mas o Defenestrando é muito mais a sua cara...hehehe...

Bjus

Fabi Lima disse...

Querido, desculpe-me: estou passando apenas para agradecer as energias positivas que você me enviou. Papai tá começando a ter uma melhora. Continue comigo nesta "corrente".
Obrigada MESMO querido.
Beijos!

Anônimo disse...

Gosto de relatos de infância, ainda mais porque eu também tinha oito anos em 1970. Lembro bem do uniforme das estaduais, onde estudavam as meninas da minha rua. Enquanto eu ia de marrom ao colégio de freiras. Também tinha a foto pestanuda do presidente e do ministro da educação. Quem era, o Jarbas Passarinho? Meus pais eram bem liberais no quesito estudos. Até não serem incomodados a respeito. Eu ficava de recuperação em quase tudo, e sempre dava um jeito de passar. Tinha uma tristeza mortal de tudo e passava minha melancólica existência resolvendo palavras cruzadas em classe. Nunca ninguém falou nada. Afinal eu passava de ano. Cruzes, aurora da minha vida o cacete!

Mina
www.minadeletras.us

Lívia disse...

Issoi foi um presente nesse domingo de ressaca!
Bjs